Chagas abertas, Sagrado Coração todo amor e bondade, o sangue do meu Senhor Jesus Cristo, no corpo meu se derrame hoje e sempre.
Eu andarei vestido e armado, com as armas de São Jorge. Para que meus inimigos tendo pés não me alcancem, tendo mãos não me peguem, tendo olhos não me exerguem e nem pensamentos eles possam ter para me fazerem mal.
Armas de fogo o meu corpo não o alcançarão, facas e lanças se quebrarão sem ao meu corpo chegar, cordas e correntes se arrebentarão sem o meu corpo amarrarem.
Jesus Cristome proteja e me defenda com o poder de sua Santa e Divina Graça, a Virgem Maria de Nazaré, me cubra com o seu Sagrado e divino manto, me protegendo em todas minhas dores e aflições, e Deus com a sua Divina Misericórdia e grande poder, seja meu defensor, contra as maldades de perseguições dos meus inimigos, e o glorioso São Jorge, em nome de Deus, em nome de Maria de Nazaré, e em nome da falange do Divino Espírito Santo, me estenda o seu escudo e as suas poderosas anulas, defendendo-me com a sua força e com a sua grandeza, do poder dos meus inimigos carnaise espirituais e de todas sua más influências, e que debaixo das patas de seu fiel ginete, meus inimigos fiquem humildes e submissos a vós, sem se atreverema ter um olhar sequer que me possa prejudicar.
Assim seja com o poder de Deus e de Jesus e da falange do Divino Espírito Santo.
Amém.
sábado, novembro 03, 2007
À sombra de El Supremo
Com a reforma constitucional aprovada na semana passada, Hugo Chávez consolida seu regime autoritário e personalista na Venezuela. Em Caracas, VEJA ouviu a história de dez venezuelanos que tiveram a vida transformada pela ditadura do "socialismo do século XXI"
Diogo Schelp, de Caracas
Para quem não tem a memória pessoal de ter vivido sob uma ditadura, ouvir depoimentos de venezuelanos é uma experiência educativa – e sufocante. O regime que o presidente Hugo Chávez está construindo na Venezuela não apenas é autoritário como se propõe a criar uma nação à imagem e semelhança de seu governante. Nesse ponto, distante de ser a promessa de novidades "século XXI", como proclama, Chávez é fiel à tradição caudilhesca do continente. O estilo centralizador, a intolerância em relação a opiniões divergentes e, sobretudo, o modo como tenta transformar as instituições públicas em um apêndice de sua vontade e idiossincrasias parecem saídos das páginas de Eu O Supremo, a obra magistral do paraguaio Augusto Roa Bastos. O personagem do título é José Gaspar Rodríguez de Francia, "ditador perpétuo" do Paraguai no século XIX e protótipo do perfeito déspota sul-americano.
Nas páginas seguintes estão as histórias de dez venezuelanos cuja vida foi transformada pelo chavismo. Elas comprovam que é impossível ficar imune a um regime como o de Chávez, um prepotente disposto a impor a sua visão de mundo a qualquer custo. Mesmo quem aufere os benefícios da adesão ao ditador torna-se prisioneiro de um esquema que exige submissão absoluta e provas freqüentes de fidelidade. Sobre os que discordam do governo, recai o peso do poder do aparato oficial, que corta o crédito dos empresários, proíbe os órgãos públicos de contratar oposicionistas e pressiona a iniciativa privada a fazer o mesmo, e chega ao extremo de, à moda soviética, punir os filhos pelas posições políticas dos pais. A sufocante atmosfera política ganhou novas nuvens negras na semana passada, quando a Assembléia Nacional terminou de referendar um por um os artigos da proposta de reforma constitucional apresentada pelo presidente. Não foi uma empreitada difícil, pois todos os deputados são chavistas (a oposição boicotou a eleição parlamentar de 2005). Apenas uma meia dúzia se absteve por razões de consciência (veja entrevista ).
A nova Constituição, que teve 20% de seus artigos alterados, dá sustentação legal às medidas autoritárias que Chávez vem colocando em prática desde que foi eleito pela primeira vez, em 1998. A centralização do poder nas mãos do presidente, a militarização do país e o desrespeito ao direito de propriedade não são novidades no governo do coronel. Agora, no entanto, foram institucionalizados na Carta Magna da Venezuela. Com um bônus: o mandato presidencial passa de seis para sete anos e pode ser renovado por tempo indeterminado nas urnas. Ou seja, Chávez pode agora aspirar à Presidência vitalícia. A Constituição será submetida à aprovação popular daqui a um mês. O processo é assim, acelerado, porque na Venezuela a Justiça Eleitoral está sob controle de funcionários leais a Chávez. No último referendo, esses quadros fiéis ao regime quebraram o sigilo do voto e permitiram que as informações fossem usadas pelo governo para punir os cidadãos que se opuseram ao presidente.
Para os venezuelanos, a confirmação da nova Constituição significará viver à sombra de um regime autoritário por um período cujas dimensões exatas talvez só possam ser traçadas pelo preço do petróleo. A exportação desse produto, cuja renda é controlada pessoalmente por Chávez, fornece os recursos que permitem ao governo comprar o apoio popular por meio de projetos assistencialistas. Nesse aspecto, o presidente venezuelano tem uma sorte do tamanho das reservas de seu país, que ocupam a sexta posição entre as maiores do planeta. O valor do barril ultrapassou nas últimas semanas a barreira dos 88 dólares, e a perspectiva é que chegue aos 100 dólares em breve. Quando Chávez foi eleito pela primeira vez, o barril valia apenas 10 dólares. A ascensão dos preços petrolíferos definiu desde o princípio o governo do coronel.
Nos últimos oito anos, seu governo passou por três fases. Na primeira, um ano depois de eleito, quando o preço do petróleo andava baixo, ele tratou de aprovar uma nova Constituição, escrita por ele próprio, que lhe permitiu colonizar com aliados a Suprema Corte, removendo esse obstáculo à sua pretensão de governar acima das instituições e da lei. O início da escalada no preço do petróleo permitiu a segunda fase, caracterizada pela invenção da "revolução bolivariana". Até hoje mal definida ideologicamente, essa expressão se traduziu na prática pela expansão do clientelismo político. Chávez criou as misiones, programas assistencialistas que estabeleceram uma dependência concreta entre a população pobre e a figura onipresente do pai da pátria. As misiones, que incluem desde cooperativas até a alfabetização de adultos, são vinculadas diretamente a Chávez e consistem basicamente em uma fórmula para distribuir pequenas quantias de dinheiro aos participantes. Para sustentar esses programas, o presidente apropria-se das reservas internacionais do país e de um fundo formado por parte do lucro da PDVSA, a estatal do petróleo. Essa despesa não necessita da aprovação da Assembléia Nacional.
A terceira fase do governo chavista começou dois anos atrás, com o anúncio de que seu objetivo era a construção do "socialismo do século XXI". O elemento ideológico mais evidente desse conceito é o desejo de Chávez de concentrar o poder em suas mãos pelo maior tempo possível. Um mito proclamado pelos chavistas é o de que o discurso "bolivarista" do presidente tem o apoio da maioria dos venezuelanos. Uma pesquisa de opinião pública feita pela Universidade Central da Venezuela (UCV), em Caracas, mostra uma realidade mais crua. A identificação com Chávez de grande parcela dos venezuelanos, sobretudo os mais pobres, é pessoal e destacada de sua retórica ideológica. Os venezuelanos gostam de Chávez por três motivos. Primeiro, porque ele se parece com as pessoas do "povo", por ser mestiço. Segundo, porque acreditam que ele dá voz aos pobres. Terceiro, porque vêem nele os valores morais, familiares e religiosos que mais prezam. "Os mesmos cidadãos que se identificam com Chávez discordam dos ataques do presidente à propriedade privada, não gostam da militarização do país e sentem calafrios só de pensar em ver a Venezuela repetir a experiência cubana", diz o sociólogo Amalio Belmonte, um dos autores do estudo.
Essa dissociação entre a figura do presidente e suas políticas é própria de ditaduras personalistas, que têm no argentino Juan Domingo Perón, no mexicano Antonio López de Santa Anna e no paraguaio Francia alguns de seus expoentes históricos. Um regime personalista, diz o sociólogo venezuelano Trino Márquez, costuma caracterizar-se por quatro princípios. O primeiro é a idéia de que o governante é o único capaz de liderar a nação para um futuro melhor. A noção de que o ditador é insubstituível é perniciosa porque o leva a acreditar que pode fazer qualquer coisa. No mês passado, Chávez mandou cancelar uma apresentação do cantor espanhol Alejandro Sanz em um teatro público de Caracas apenas porque o músico havia criticado seu governo. O segundo princípio do personalismo é que, independentemente de haver ou não respaldo popular para o regime, o governante necessita cimentar sua força política no controle das Forças Armadas ou de milícias de civis armados. Chávez tem os dois. Sua milícia bolivariana, em que ele espera um dia reunir 2 milhões de homens e mulheres, tem até escritórios dentro das universidades bolivarianas, instituições de ensino superior criadas por Chávez para formar a futura elite de seu "socialismo do século XXI".
Quanto às Forças Armadas, Chávez acaba de conquistar, com a reforma constitucional, o direito de decidir pessoalmente a promoção de todos os militares, dos sargentos aos generais. A Venezuela, sob Chávez, tornou-se o segundo país com o maior gasto militar da América do Sul, depois da Colômbia. Recentemente, Chávez comprou 24 caças supersônicos russos Sukhoi, cinqüenta helicópteros e 100.000 fuzis Kalashnikov, entre outros equipamentos. Quem Chávez pretende enfrentar com esse arsenal? Certamente não os Estados Unidos, apesar de sua retórica antiamericana. Tampouco servirá para invadir a Bolívia, como já prometeu fazer caso seu amigo Evo Morales seja apeado do poder. "Na verdade, a Venezuela não tem um verdadeiro inimigo externo do qual se defender", diz o especialista militar Fernando Sampaio, professor da Escola Superior de Geopolítica e Estratégia, em Porto Alegre. "Portanto, o mais provável é que Chávez esteja se armando para se proteger de seu próprio povo, no dia em que os venezuelanos se cansarem dele."
O terceiro princípio de um regime autoritário personalista é a destruição do estado de direito, já que todas as instituições públicas têm de se submeter à vontade do governante. Na Venezuela, além dos deputados, os juízes, as autoridades eleitorais e até os promotores públicos obedecem às ordens de Chávez. O coronel não apenas nomeou chavistas para os cargos mais altos dessas carreiras como tem o poder de demitir magistrados, já que 80% deles têm contratos temporários com o estado. O quarto elemento personalista, comum no chavismo, é o culto à imagem do líder. Chávez desenvolve esse seu lado narcisista de três maneiras. A primeira consiste em expor seu rosto em tamanho gigante em painéis, murais e até nas laterais dos ônibus nas ruas das cidades venezuelanas. A segunda maneira é sufocando os cidadãos com sua presença intermitente em pronunciamentos no rádio e na TV – ele controla o conteúdo de nada menos que oito canais abertos. A terceira forma de culto à personalidade é apresentar-se como o herdeiro histórico de Simon Bolívar, cuja obra de construção de uma grande nação sul-americana Chávez pretende concluir. Não há entre os brasileiros nenhum herói que receba a idolatria dedicada a Bolívar na Venezuela. Chávez espertamente chamou seu governo de "revolução bolivariana", implicitamente colocando seus opositores na condição de traidores da pátria. É irônico que Chávez seja amigo de Fidel Castro e elogie seu regime marxista, visto que Karl Marx simplesmente desprezava Bolívar. Em carta a seu amigo Friedrich Engels, o ideólogo do comunismo escreveu: "Simon Bolívar é o canalha mais covarde, brutal e miserável".
Como na ditadura de Fidel Castro, Chávez adotou o preceito de que o país entrou em processo de revolução permanente. Está escrito em sua nova Constituição que os meios de participação política do povo (como o voto) devem servir ao propósito da construção do socialismo. A estratégia de Chávez consiste em manter o país em uma transição constante. Isso cria uma sensação ambígua de insegurança e esperança, o que ajuda o presidente a manter as instituições e as massas sob seu controle. O perigo do narcisismo aliado ao autoritarismo é o de Chávez atribuir-se tarefas quase divinas, como a de formar um "novo homem" inspirado em si próprio. "Nesse ponto, Chávez se parece muito com o paraguaio Francia, que chegou a proibir o casamento das jovens brancas com descendentes de espanhóis porque queria criar uma nação mestiça", disse a VEJA o cientista político americano Paul Sondrol, especialista em ditaduras latino-americanas da Universidade do Colorado. A Revolução Russa tinha ambições similares, como escreveu Leon Trotsky em 1916: "Produzir uma versão melhorada do homem, essa é a tarefa futura do comunismo". A tentativa soviética de extirpar do novo homem tudo o que fosse humano e natural resultou, como era de esperar, no fim do comunismo e na sobrevivência do que é humano e natural.
Eficiente em usar os mecanismos democráticos para acabar com a liberdade, Chávez também tem se mostrado capaz de sucatear a economia do país. A afirmação pode parecer contraditória para uma nação cujo produto interno bruto cresce a taxas superiores a 10% ao ano. Mas se justifica quando se levam em conta os fatores que têm alimentado essa expansão. A economia venezuelana cresce graças ao aumento da receita petrolífera e do gasto público. "Em uma economia com muita liquidez e consumo elevado como a nossa, é natural que alguns empresários estejam ganhando muito dinheiro", diz o ex-ministro do Desenvolvimento Urbano da Venezuela Luís Penzini Fleury. "O problema é que as ameaças de estatização, o controle de preços, as importações maciças e os subsídios concedidos a uma parcela da população afastam qualquer interesse dos empresários em fazer novos investimentos", completa Penzini. Resultado: os venezuelanos nunca compraram tanto (a venda de carros no acumulado deste ano já superou em 50% o total de 2006), mas a oferta não está dando conta da demanda porque as empresas não investem na ampliação da produção. Não é sem razão. Quem vai querer investir em um país onde há poucos meses o governo estatizou as principais empresas de telefonia e de energia e fechou um dos maiores canais de TV por razões políticas?
O investimento externo direto na Venezuela é negativo – ou seja, há mais empresários retirando o capital investido do que apostando suas fichas no país. As poucas empresas que ainda se arriscam são construtoras, bancos e shopping centers. As vendas nos shoppings venezuelanos aumentaram quase 30% no primeiro trimestre deste ano em relação ao mesmo período do ano passado. A demanda interna é tal que as importações vindas dos Estados Unidos – o grande demônio imperialista, segundo Chávez – aumentaram 40% entre 2005 e 2006. O crescimento das importações não é suficiente para evitar a falta de itens básicos nas gôndolas dos supermercados venezuelanos, uma decorrência direta do congelamento de preços instituído pelo governo numa tentativa tosca de conter a inflação, que deve fechar o ano em 20%, a maior da região. O resultado, na semana passada, eram filas de até seis horas para comprar leite nos mercados estatais. O racionamento de alimentos é um dos primeiros sinais daquilo que os venezuelanos mais temem: a transformação da Venezuela em uma nova Cuba.
A ATRIZ DE NOVELAS OUSOU PROTESTAR...
Fotos Anderson Schneider/WPN
Atriz de sucesso e candidata ao Miss Venezuela de 1994, Fabiola Colmenares acaba de descobrir que a beleza e a fama não garantem imunidade à perseguição ideológica do governo chavista. No fim de outubro, quando se preparava para estrear sua 15ª novela, a atriz foi sumariamente demitida pela Venevisión, emissora na qual trabalhava havia catorze anos. Não foi feito segredo sobre o motivo: ela foi punida por ter participado de protestos contra a reforma constitucional. "O país mudou muito com o governo Chávez. Qualquer pessoa que discorde dele é imediatamente discriminada e desqualificada", diz a atriz de 33 anos (na foto, Fabiola no pátio da Assembléia Nacional).
OS SERVOS FIÉIS DA REVOLUÇÃO
Talvez o mais vistoso programa social do governo Chávez seja a universidade bolivariana. Nela, o regime espera formar a próxima geração de líderes chavistas. Os alunos são jovens pobres que dificilmente teriam a possibilidade de estudar em uma boa universidade, ainda que pública. O estudante de direito Erick Morales, 19 anos, é filho de um mecânico e de uma escriturária. Ele recebe uma bolsa equivalente a 300 reais mensais para continuar estudando. "Olhe no rosto dos estudantes das universidades tradicionais e você verá descendentes de espanhóis, portugueses e italianos", diz Erick. "Eles formam um grupo minoritário que quer manter seus privilégios, numa luta de classes contra nós, jovens mestiços." Para Erick, o grande mérito de Chávez é ter usado a renda do petróleo para ajudar os pobres.
EXPULSO DA PRÓPRIA EMPRESA
Rafael Alfonzo Hernández é herdeiro de uma das maiores indústrias de alimentos da Venezuela, a Alfonzo Rivas. Em 2002, ele apoiou a greve geral que quase levou à queda de Chávez e, no mesmo ano, participou das negociações montadas para colocar panos quentes na tensa relação entre empresários e governo. Sua identificação como oposicionista se tornou uma ameaça à sobrevivência da empresa. Em 2003, Hernández foi forçado a deixar a presidência do grupo industrial fundado por seu avô. Hoje, ele é membro de uma ONG de pesquisas econômicas. "A prioridade do empresário é a sobrevivência imediata de seu negócio. Não há mais estratégias a longo prazo, e um dia o país vai pagar caro por isso", diz Hernández.
O PAI FEZ GREVE, A FILHA É PUNIDA
O governo Chávez dividiu a família de Angela Beatriz Sposito Falcón, 20 anos, estudante de psicologia na Universidade Central da Venezuela. Seu pai foi demitido da PDVSA, a estatal do petróleo, depois da greve de 2002. Sem conseguir emprego e ameaçado de prisão, ele exilou-se nos Estados Unidos. Com o pai fora de alcance, o regime chavista vinga-se na filha, que só tinha 15 anos quando ocorreu a greve. "Não posso trabalhar no governo, e meu pedido de bolsa de iniciação científica foi negado porque meu pai está na lista negra de Chávez", conta Angela. Ao solicitar uma bolsa de estudos, o estudante preenche um formulário oficial com perguntas ideológicas. Qualquer restrição ao governo Chávez é motivo para desqualificação. "Com este governo, eu não vejo futuro para mim no meu país", diz Angela.
O EMPRESÁRIO AMIGO VAI BEM, OBRIGADO
Nos últimos quatro anos, as importações venezuelanas cresceram 200%. Para aproveitar a explosão de consumo, um empresário precisa da boa vontade do governo para obter dólares. Os negócios de Majed Khalil, cuja família é dona de uma indústria de pescado enlatado e de uma importadora de produtos eletrônicos, vão muito bem. Em seu escritório em Caracas, Khalil mantém fotos suas com o presidente Chávez e uma biografia em quatro volumes de Simon Bolívar. "Não é verdade que o governo está contra o empresário", diz. "Vejo justamente o contrário. As regras do jogo são claras, e Chávez tem nos chamado a trabalhar com ele."
ENTREVISTA
"NÃO QUERO UMA DITADURA DO PROLETARIADO"
O deputado Ismael García é secretário-geral do Podemos, o único partido da Assembléia Nacional venezuelana que se opõe à reforma constitucional que dá poderes ditatoriais a Chávez. Trata-se de uma oposição sui generis, já que García, assim como seus colegas de partido, é chavista e apóia o governo do coronel desde o seu início. O deputado concedeu a seguinte entrevista a VEJA em Caracas:
Por que o senhor, membro da bancada chavista, ficou contra a reforma constitucional proposta por Chávez?
Essa reforma impõe medidas que permitem ao estado venezuelano passar por cima do povo. Infelizmente, apenas oito deputados, inclusive eu, se opõem à reforma. Isso significa que ela seria aprovada de qualquer jeito, o que é muito grave. A Constituição é o contrato social de uma nação, a carta de navegação do país. Por isso, é necessário haver consenso na sociedade para mudá-la da maneira como o governo de Hugo Chávez quer. O que se está propondo é muito mais que uma reforma, é uma nova Constituição. Essa Assembléia não tem mandato popular para isso. O governo está impondo uma visão que não é a da maioria do país.
Que visão é essa?
O estado que o novo texto constitucional cria, a meu ver, não é socialista, ao contrário do que diz o governo. O que está sendo criado é um estado todo-poderoso que, entre outras coisas, pisoteia o direito do povo de escolher seus representantes, princípio fundamental de uma democracia. A nova Constituição permite ao presidente da República passar por cima da autoridade de prefeitos e governadores eleitos pelo povo. Isso será feito por meio das comunas, cujos representantes não são escolhidos pelo voto, mas por assembléias populares, manipuladas por quem detém o controle do aparato de estado. Nós apoiamos Chávez, mas somos contra essa atitude autoritária. Vivemos um momento de muita intolerância política no país.
Chávez chamou o senhor e seus colegas de "traidores, covardes, duas caras, corruptos, ambiciosos e mesquinhos".
Como o senhor vê esses adjetivos?
O presidente reagiu à nossa posição fazendo comentários com o objetivo de nos desqualificar. Não respondi da mesma maneira. Em uma sociedade democrática devem existir diversidade e pluralidade de opiniões. Não posso desqualificar uma pessoa apenas porque ela pensa de forma diferente. O linguajar de um presidente não pode ser assim, ainda mais quando se refere a nós, uma força política absolutamente leal e que apoiou o programa de governo de Chávez sem exceções. Uma Constituição, no entanto, não é um plano de governo, que pode mudar de mandato em mandato. Não pode conter artigos que pensávamos estar eliminados de nossa história, como o que prevê o fim da liberdade de expressão no caso de o presidente declarar estado de exceção.
Qual é sua opinião sobre a reeleição indefinida para presidente?
Para haver reeleição indefinida, seria ao menos necessário haver um sistema de pesos e contrapesos entre os poderes do estado venezuelano. Isso não existe. O Executivo venezuelano controla tudo. Até as manifestações de estudantes são reprimidas à força. Chávez está usando as Forças Armadas para dar um golpe de estado na Constituição. Eu sou um homem de esquerda, mas não quero uma ditadura do proletariado. Defendo um socialismo democrático, não um socialismo de estado. Não podemos aceitar um modelo que já fracassou em outros países.
Diogo Schelp, de Caracas
Para quem não tem a memória pessoal de ter vivido sob uma ditadura, ouvir depoimentos de venezuelanos é uma experiência educativa – e sufocante. O regime que o presidente Hugo Chávez está construindo na Venezuela não apenas é autoritário como se propõe a criar uma nação à imagem e semelhança de seu governante. Nesse ponto, distante de ser a promessa de novidades "século XXI", como proclama, Chávez é fiel à tradição caudilhesca do continente. O estilo centralizador, a intolerância em relação a opiniões divergentes e, sobretudo, o modo como tenta transformar as instituições públicas em um apêndice de sua vontade e idiossincrasias parecem saídos das páginas de Eu O Supremo, a obra magistral do paraguaio Augusto Roa Bastos. O personagem do título é José Gaspar Rodríguez de Francia, "ditador perpétuo" do Paraguai no século XIX e protótipo do perfeito déspota sul-americano.
Nas páginas seguintes estão as histórias de dez venezuelanos cuja vida foi transformada pelo chavismo. Elas comprovam que é impossível ficar imune a um regime como o de Chávez, um prepotente disposto a impor a sua visão de mundo a qualquer custo. Mesmo quem aufere os benefícios da adesão ao ditador torna-se prisioneiro de um esquema que exige submissão absoluta e provas freqüentes de fidelidade. Sobre os que discordam do governo, recai o peso do poder do aparato oficial, que corta o crédito dos empresários, proíbe os órgãos públicos de contratar oposicionistas e pressiona a iniciativa privada a fazer o mesmo, e chega ao extremo de, à moda soviética, punir os filhos pelas posições políticas dos pais. A sufocante atmosfera política ganhou novas nuvens negras na semana passada, quando a Assembléia Nacional terminou de referendar um por um os artigos da proposta de reforma constitucional apresentada pelo presidente. Não foi uma empreitada difícil, pois todos os deputados são chavistas (a oposição boicotou a eleição parlamentar de 2005). Apenas uma meia dúzia se absteve por razões de consciência (veja entrevista ).
A nova Constituição, que teve 20% de seus artigos alterados, dá sustentação legal às medidas autoritárias que Chávez vem colocando em prática desde que foi eleito pela primeira vez, em 1998. A centralização do poder nas mãos do presidente, a militarização do país e o desrespeito ao direito de propriedade não são novidades no governo do coronel. Agora, no entanto, foram institucionalizados na Carta Magna da Venezuela. Com um bônus: o mandato presidencial passa de seis para sete anos e pode ser renovado por tempo indeterminado nas urnas. Ou seja, Chávez pode agora aspirar à Presidência vitalícia. A Constituição será submetida à aprovação popular daqui a um mês. O processo é assim, acelerado, porque na Venezuela a Justiça Eleitoral está sob controle de funcionários leais a Chávez. No último referendo, esses quadros fiéis ao regime quebraram o sigilo do voto e permitiram que as informações fossem usadas pelo governo para punir os cidadãos que se opuseram ao presidente.
Para os venezuelanos, a confirmação da nova Constituição significará viver à sombra de um regime autoritário por um período cujas dimensões exatas talvez só possam ser traçadas pelo preço do petróleo. A exportação desse produto, cuja renda é controlada pessoalmente por Chávez, fornece os recursos que permitem ao governo comprar o apoio popular por meio de projetos assistencialistas. Nesse aspecto, o presidente venezuelano tem uma sorte do tamanho das reservas de seu país, que ocupam a sexta posição entre as maiores do planeta. O valor do barril ultrapassou nas últimas semanas a barreira dos 88 dólares, e a perspectiva é que chegue aos 100 dólares em breve. Quando Chávez foi eleito pela primeira vez, o barril valia apenas 10 dólares. A ascensão dos preços petrolíferos definiu desde o princípio o governo do coronel.
Nos últimos oito anos, seu governo passou por três fases. Na primeira, um ano depois de eleito, quando o preço do petróleo andava baixo, ele tratou de aprovar uma nova Constituição, escrita por ele próprio, que lhe permitiu colonizar com aliados a Suprema Corte, removendo esse obstáculo à sua pretensão de governar acima das instituições e da lei. O início da escalada no preço do petróleo permitiu a segunda fase, caracterizada pela invenção da "revolução bolivariana". Até hoje mal definida ideologicamente, essa expressão se traduziu na prática pela expansão do clientelismo político. Chávez criou as misiones, programas assistencialistas que estabeleceram uma dependência concreta entre a população pobre e a figura onipresente do pai da pátria. As misiones, que incluem desde cooperativas até a alfabetização de adultos, são vinculadas diretamente a Chávez e consistem basicamente em uma fórmula para distribuir pequenas quantias de dinheiro aos participantes. Para sustentar esses programas, o presidente apropria-se das reservas internacionais do país e de um fundo formado por parte do lucro da PDVSA, a estatal do petróleo. Essa despesa não necessita da aprovação da Assembléia Nacional.
A terceira fase do governo chavista começou dois anos atrás, com o anúncio de que seu objetivo era a construção do "socialismo do século XXI". O elemento ideológico mais evidente desse conceito é o desejo de Chávez de concentrar o poder em suas mãos pelo maior tempo possível. Um mito proclamado pelos chavistas é o de que o discurso "bolivarista" do presidente tem o apoio da maioria dos venezuelanos. Uma pesquisa de opinião pública feita pela Universidade Central da Venezuela (UCV), em Caracas, mostra uma realidade mais crua. A identificação com Chávez de grande parcela dos venezuelanos, sobretudo os mais pobres, é pessoal e destacada de sua retórica ideológica. Os venezuelanos gostam de Chávez por três motivos. Primeiro, porque ele se parece com as pessoas do "povo", por ser mestiço. Segundo, porque acreditam que ele dá voz aos pobres. Terceiro, porque vêem nele os valores morais, familiares e religiosos que mais prezam. "Os mesmos cidadãos que se identificam com Chávez discordam dos ataques do presidente à propriedade privada, não gostam da militarização do país e sentem calafrios só de pensar em ver a Venezuela repetir a experiência cubana", diz o sociólogo Amalio Belmonte, um dos autores do estudo.
Essa dissociação entre a figura do presidente e suas políticas é própria de ditaduras personalistas, que têm no argentino Juan Domingo Perón, no mexicano Antonio López de Santa Anna e no paraguaio Francia alguns de seus expoentes históricos. Um regime personalista, diz o sociólogo venezuelano Trino Márquez, costuma caracterizar-se por quatro princípios. O primeiro é a idéia de que o governante é o único capaz de liderar a nação para um futuro melhor. A noção de que o ditador é insubstituível é perniciosa porque o leva a acreditar que pode fazer qualquer coisa. No mês passado, Chávez mandou cancelar uma apresentação do cantor espanhol Alejandro Sanz em um teatro público de Caracas apenas porque o músico havia criticado seu governo. O segundo princípio do personalismo é que, independentemente de haver ou não respaldo popular para o regime, o governante necessita cimentar sua força política no controle das Forças Armadas ou de milícias de civis armados. Chávez tem os dois. Sua milícia bolivariana, em que ele espera um dia reunir 2 milhões de homens e mulheres, tem até escritórios dentro das universidades bolivarianas, instituições de ensino superior criadas por Chávez para formar a futura elite de seu "socialismo do século XXI".
Quanto às Forças Armadas, Chávez acaba de conquistar, com a reforma constitucional, o direito de decidir pessoalmente a promoção de todos os militares, dos sargentos aos generais. A Venezuela, sob Chávez, tornou-se o segundo país com o maior gasto militar da América do Sul, depois da Colômbia. Recentemente, Chávez comprou 24 caças supersônicos russos Sukhoi, cinqüenta helicópteros e 100.000 fuzis Kalashnikov, entre outros equipamentos. Quem Chávez pretende enfrentar com esse arsenal? Certamente não os Estados Unidos, apesar de sua retórica antiamericana. Tampouco servirá para invadir a Bolívia, como já prometeu fazer caso seu amigo Evo Morales seja apeado do poder. "Na verdade, a Venezuela não tem um verdadeiro inimigo externo do qual se defender", diz o especialista militar Fernando Sampaio, professor da Escola Superior de Geopolítica e Estratégia, em Porto Alegre. "Portanto, o mais provável é que Chávez esteja se armando para se proteger de seu próprio povo, no dia em que os venezuelanos se cansarem dele."
O terceiro princípio de um regime autoritário personalista é a destruição do estado de direito, já que todas as instituições públicas têm de se submeter à vontade do governante. Na Venezuela, além dos deputados, os juízes, as autoridades eleitorais e até os promotores públicos obedecem às ordens de Chávez. O coronel não apenas nomeou chavistas para os cargos mais altos dessas carreiras como tem o poder de demitir magistrados, já que 80% deles têm contratos temporários com o estado. O quarto elemento personalista, comum no chavismo, é o culto à imagem do líder. Chávez desenvolve esse seu lado narcisista de três maneiras. A primeira consiste em expor seu rosto em tamanho gigante em painéis, murais e até nas laterais dos ônibus nas ruas das cidades venezuelanas. A segunda maneira é sufocando os cidadãos com sua presença intermitente em pronunciamentos no rádio e na TV – ele controla o conteúdo de nada menos que oito canais abertos. A terceira forma de culto à personalidade é apresentar-se como o herdeiro histórico de Simon Bolívar, cuja obra de construção de uma grande nação sul-americana Chávez pretende concluir. Não há entre os brasileiros nenhum herói que receba a idolatria dedicada a Bolívar na Venezuela. Chávez espertamente chamou seu governo de "revolução bolivariana", implicitamente colocando seus opositores na condição de traidores da pátria. É irônico que Chávez seja amigo de Fidel Castro e elogie seu regime marxista, visto que Karl Marx simplesmente desprezava Bolívar. Em carta a seu amigo Friedrich Engels, o ideólogo do comunismo escreveu: "Simon Bolívar é o canalha mais covarde, brutal e miserável".
Como na ditadura de Fidel Castro, Chávez adotou o preceito de que o país entrou em processo de revolução permanente. Está escrito em sua nova Constituição que os meios de participação política do povo (como o voto) devem servir ao propósito da construção do socialismo. A estratégia de Chávez consiste em manter o país em uma transição constante. Isso cria uma sensação ambígua de insegurança e esperança, o que ajuda o presidente a manter as instituições e as massas sob seu controle. O perigo do narcisismo aliado ao autoritarismo é o de Chávez atribuir-se tarefas quase divinas, como a de formar um "novo homem" inspirado em si próprio. "Nesse ponto, Chávez se parece muito com o paraguaio Francia, que chegou a proibir o casamento das jovens brancas com descendentes de espanhóis porque queria criar uma nação mestiça", disse a VEJA o cientista político americano Paul Sondrol, especialista em ditaduras latino-americanas da Universidade do Colorado. A Revolução Russa tinha ambições similares, como escreveu Leon Trotsky em 1916: "Produzir uma versão melhorada do homem, essa é a tarefa futura do comunismo". A tentativa soviética de extirpar do novo homem tudo o que fosse humano e natural resultou, como era de esperar, no fim do comunismo e na sobrevivência do que é humano e natural.
Eficiente em usar os mecanismos democráticos para acabar com a liberdade, Chávez também tem se mostrado capaz de sucatear a economia do país. A afirmação pode parecer contraditória para uma nação cujo produto interno bruto cresce a taxas superiores a 10% ao ano. Mas se justifica quando se levam em conta os fatores que têm alimentado essa expansão. A economia venezuelana cresce graças ao aumento da receita petrolífera e do gasto público. "Em uma economia com muita liquidez e consumo elevado como a nossa, é natural que alguns empresários estejam ganhando muito dinheiro", diz o ex-ministro do Desenvolvimento Urbano da Venezuela Luís Penzini Fleury. "O problema é que as ameaças de estatização, o controle de preços, as importações maciças e os subsídios concedidos a uma parcela da população afastam qualquer interesse dos empresários em fazer novos investimentos", completa Penzini. Resultado: os venezuelanos nunca compraram tanto (a venda de carros no acumulado deste ano já superou em 50% o total de 2006), mas a oferta não está dando conta da demanda porque as empresas não investem na ampliação da produção. Não é sem razão. Quem vai querer investir em um país onde há poucos meses o governo estatizou as principais empresas de telefonia e de energia e fechou um dos maiores canais de TV por razões políticas?
O investimento externo direto na Venezuela é negativo – ou seja, há mais empresários retirando o capital investido do que apostando suas fichas no país. As poucas empresas que ainda se arriscam são construtoras, bancos e shopping centers. As vendas nos shoppings venezuelanos aumentaram quase 30% no primeiro trimestre deste ano em relação ao mesmo período do ano passado. A demanda interna é tal que as importações vindas dos Estados Unidos – o grande demônio imperialista, segundo Chávez – aumentaram 40% entre 2005 e 2006. O crescimento das importações não é suficiente para evitar a falta de itens básicos nas gôndolas dos supermercados venezuelanos, uma decorrência direta do congelamento de preços instituído pelo governo numa tentativa tosca de conter a inflação, que deve fechar o ano em 20%, a maior da região. O resultado, na semana passada, eram filas de até seis horas para comprar leite nos mercados estatais. O racionamento de alimentos é um dos primeiros sinais daquilo que os venezuelanos mais temem: a transformação da Venezuela em uma nova Cuba.
A ATRIZ DE NOVELAS OUSOU PROTESTAR...
Fotos Anderson Schneider/WPN
Atriz de sucesso e candidata ao Miss Venezuela de 1994, Fabiola Colmenares acaba de descobrir que a beleza e a fama não garantem imunidade à perseguição ideológica do governo chavista. No fim de outubro, quando se preparava para estrear sua 15ª novela, a atriz foi sumariamente demitida pela Venevisión, emissora na qual trabalhava havia catorze anos. Não foi feito segredo sobre o motivo: ela foi punida por ter participado de protestos contra a reforma constitucional. "O país mudou muito com o governo Chávez. Qualquer pessoa que discorde dele é imediatamente discriminada e desqualificada", diz a atriz de 33 anos (na foto, Fabiola no pátio da Assembléia Nacional).
OS SERVOS FIÉIS DA REVOLUÇÃO
Talvez o mais vistoso programa social do governo Chávez seja a universidade bolivariana. Nela, o regime espera formar a próxima geração de líderes chavistas. Os alunos são jovens pobres que dificilmente teriam a possibilidade de estudar em uma boa universidade, ainda que pública. O estudante de direito Erick Morales, 19 anos, é filho de um mecânico e de uma escriturária. Ele recebe uma bolsa equivalente a 300 reais mensais para continuar estudando. "Olhe no rosto dos estudantes das universidades tradicionais e você verá descendentes de espanhóis, portugueses e italianos", diz Erick. "Eles formam um grupo minoritário que quer manter seus privilégios, numa luta de classes contra nós, jovens mestiços." Para Erick, o grande mérito de Chávez é ter usado a renda do petróleo para ajudar os pobres.
EXPULSO DA PRÓPRIA EMPRESA
Rafael Alfonzo Hernández é herdeiro de uma das maiores indústrias de alimentos da Venezuela, a Alfonzo Rivas. Em 2002, ele apoiou a greve geral que quase levou à queda de Chávez e, no mesmo ano, participou das negociações montadas para colocar panos quentes na tensa relação entre empresários e governo. Sua identificação como oposicionista se tornou uma ameaça à sobrevivência da empresa. Em 2003, Hernández foi forçado a deixar a presidência do grupo industrial fundado por seu avô. Hoje, ele é membro de uma ONG de pesquisas econômicas. "A prioridade do empresário é a sobrevivência imediata de seu negócio. Não há mais estratégias a longo prazo, e um dia o país vai pagar caro por isso", diz Hernández.
O PAI FEZ GREVE, A FILHA É PUNIDA
O governo Chávez dividiu a família de Angela Beatriz Sposito Falcón, 20 anos, estudante de psicologia na Universidade Central da Venezuela. Seu pai foi demitido da PDVSA, a estatal do petróleo, depois da greve de 2002. Sem conseguir emprego e ameaçado de prisão, ele exilou-se nos Estados Unidos. Com o pai fora de alcance, o regime chavista vinga-se na filha, que só tinha 15 anos quando ocorreu a greve. "Não posso trabalhar no governo, e meu pedido de bolsa de iniciação científica foi negado porque meu pai está na lista negra de Chávez", conta Angela. Ao solicitar uma bolsa de estudos, o estudante preenche um formulário oficial com perguntas ideológicas. Qualquer restrição ao governo Chávez é motivo para desqualificação. "Com este governo, eu não vejo futuro para mim no meu país", diz Angela.
O EMPRESÁRIO AMIGO VAI BEM, OBRIGADO
Nos últimos quatro anos, as importações venezuelanas cresceram 200%. Para aproveitar a explosão de consumo, um empresário precisa da boa vontade do governo para obter dólares. Os negócios de Majed Khalil, cuja família é dona de uma indústria de pescado enlatado e de uma importadora de produtos eletrônicos, vão muito bem. Em seu escritório em Caracas, Khalil mantém fotos suas com o presidente Chávez e uma biografia em quatro volumes de Simon Bolívar. "Não é verdade que o governo está contra o empresário", diz. "Vejo justamente o contrário. As regras do jogo são claras, e Chávez tem nos chamado a trabalhar com ele."
ENTREVISTA
"NÃO QUERO UMA DITADURA DO PROLETARIADO"
O deputado Ismael García é secretário-geral do Podemos, o único partido da Assembléia Nacional venezuelana que se opõe à reforma constitucional que dá poderes ditatoriais a Chávez. Trata-se de uma oposição sui generis, já que García, assim como seus colegas de partido, é chavista e apóia o governo do coronel desde o seu início. O deputado concedeu a seguinte entrevista a VEJA em Caracas:
Por que o senhor, membro da bancada chavista, ficou contra a reforma constitucional proposta por Chávez?
Essa reforma impõe medidas que permitem ao estado venezuelano passar por cima do povo. Infelizmente, apenas oito deputados, inclusive eu, se opõem à reforma. Isso significa que ela seria aprovada de qualquer jeito, o que é muito grave. A Constituição é o contrato social de uma nação, a carta de navegação do país. Por isso, é necessário haver consenso na sociedade para mudá-la da maneira como o governo de Hugo Chávez quer. O que se está propondo é muito mais que uma reforma, é uma nova Constituição. Essa Assembléia não tem mandato popular para isso. O governo está impondo uma visão que não é a da maioria do país.
Que visão é essa?
O estado que o novo texto constitucional cria, a meu ver, não é socialista, ao contrário do que diz o governo. O que está sendo criado é um estado todo-poderoso que, entre outras coisas, pisoteia o direito do povo de escolher seus representantes, princípio fundamental de uma democracia. A nova Constituição permite ao presidente da República passar por cima da autoridade de prefeitos e governadores eleitos pelo povo. Isso será feito por meio das comunas, cujos representantes não são escolhidos pelo voto, mas por assembléias populares, manipuladas por quem detém o controle do aparato de estado. Nós apoiamos Chávez, mas somos contra essa atitude autoritária. Vivemos um momento de muita intolerância política no país.
Chávez chamou o senhor e seus colegas de "traidores, covardes, duas caras, corruptos, ambiciosos e mesquinhos".
Como o senhor vê esses adjetivos?
O presidente reagiu à nossa posição fazendo comentários com o objetivo de nos desqualificar. Não respondi da mesma maneira. Em uma sociedade democrática devem existir diversidade e pluralidade de opiniões. Não posso desqualificar uma pessoa apenas porque ela pensa de forma diferente. O linguajar de um presidente não pode ser assim, ainda mais quando se refere a nós, uma força política absolutamente leal e que apoiou o programa de governo de Chávez sem exceções. Uma Constituição, no entanto, não é um plano de governo, que pode mudar de mandato em mandato. Não pode conter artigos que pensávamos estar eliminados de nossa história, como o que prevê o fim da liberdade de expressão no caso de o presidente declarar estado de exceção.
Qual é sua opinião sobre a reeleição indefinida para presidente?
Para haver reeleição indefinida, seria ao menos necessário haver um sistema de pesos e contrapesos entre os poderes do estado venezuelano. Isso não existe. O Executivo venezuelano controla tudo. Até as manifestações de estudantes são reprimidas à força. Chávez está usando as Forças Armadas para dar um golpe de estado na Constituição. Eu sou um homem de esquerda, mas não quero uma ditadura do proletariado. Defendo um socialismo democrático, não um socialismo de estado. Não podemos aceitar um modelo que já fracassou em outros países.
sábado, outubro 20, 2007
A Pastoral da Pajero
(Diogo Mainardi)
A Pastoral da Pajero
"O padre Júlio Lancellotti ofereceu ao morador de rua que ameaçou denunciá-lo por pedofilia o aluguel de uma casa, uma bicicleta, uma moto, um terreno, uma viagem à praia e uma Mitsubishi Pajero. Bem que poderia estender sua 'amizadeíntima' a todos os moradores de rua da cidade"
O padre Júlio Lancellotti era o coordenador da Pastoral do Povo de Rua. A partir de agora, ele será conhecido também como o coordenador da Pastoral da Mitsubishi Pajero.
Recapitulo. Em meados de 2005, segundo o próprio padre Júlio Lancellotti, um assassino chamado Anderson Batista o acusou de abusar de seu enteado de 8 anos e passou a chantageá-lo com pedidos regulares de dinheiro. Como um Michael Jackson da Mooca, o padre Júlio Lancellotti negou ter abusado do menino. Como um Michael Jackson do Belenzinho, ele preferiu pagar o chantagista mesmo assim. No total, foram mais de 50 000 reais, incluindo o pagamento de vinte parcelas de uma Mitsubishi Pajero.
A polícia terá de esclarecer todos os aspectos do relacionamento do padre Júlio Lancellotti com o chantagista, definido pelo advogado deste último como "amizade íntima". Foi chantagem? Foi presente? A polícia terá de esclarecer igualmente se o dinheiro usado para pagá-lo saiu de suas economias pessoais ou da entidade beneficente que ele dirige. O padre Júlio Lancellotti declarou que pode contar apenas com os 1 000 reais que recebe da Igreja. Mentira. Desde 1975, ele é funcionário contratado da Febem, e continua a ganhar do estado um salário de 2 480 reais. Além disso, a prefeitura repassa mensalmente à sua ONG, Bom Parto, 500 000 reais. É preciso saber se a Mitsubishi Pajero foi comprada com esse dinheiro.
No ano passado, o padre Júlio Lancellotti acusou a prefeitura paulistana de "práticas higienistas", por querer tirar os moradores de rua do centro da cidade, oferecendo-lhes "só um albergue". Pode-se argumentar que o padre Júlio Lancellotti ofereceu ao morador de rua que ameaçou denunciá-lo por pedofilia muito mais do que um albergue. Ofereceu-lhe o aluguel de uma casa, uma bicicleta, uma motocicleta, um terreno, uma viagem à praia e – ei-la – uma Mitsubishi Pajero. Bem que ele poderia estender sua "amizade íntima" a todos os moradores de rua da cidade.
VEJA publicou uma reportagem sobre a disputa entre a prefeitura paulistana e o padre Júlio Lancellotti. Ele chamou a revista de "autoritária". A petista Maria Vitória Benevides foi mais longe – chamou VEJA de "fascistóide". E o Observatório da Imprensa comentou a reportagem num artigo cheio de termos de duplo sentido, cujo significado só agora consegui entender: "o rabo do texto", "erguer o traseiro", "jornalismo de latrina", "o padre Júlio estende a mão", "via inversa", "amante da dialética", "iguaria de fel", "vanguarda do atraso".
O padre Júlio Lancellotti participou de todas as campanhas eleitorais de Lula. Em 2002, ao tratar do problema dos menores abandonados, Lula apresentou a seguinte solução: "Você pega o padre Júlio e bota ele para cuidar de criança, ele vai cuidar melhor do que qualquer aparelho de estado". Dependendo do que a polícia descobrir, talvez não seja uma idéia tão boa assim botar o padre Júlio para cuidar de criança.
(Veja, 24/10/07)
A Pastoral da Pajero
"O padre Júlio Lancellotti ofereceu ao morador de rua que ameaçou denunciá-lo por pedofilia o aluguel de uma casa, uma bicicleta, uma moto, um terreno, uma viagem à praia e uma Mitsubishi Pajero. Bem que poderia estender sua 'amizadeíntima' a todos os moradores de rua da cidade"
O padre Júlio Lancellotti era o coordenador da Pastoral do Povo de Rua. A partir de agora, ele será conhecido também como o coordenador da Pastoral da Mitsubishi Pajero.
Recapitulo. Em meados de 2005, segundo o próprio padre Júlio Lancellotti, um assassino chamado Anderson Batista o acusou de abusar de seu enteado de 8 anos e passou a chantageá-lo com pedidos regulares de dinheiro. Como um Michael Jackson da Mooca, o padre Júlio Lancellotti negou ter abusado do menino. Como um Michael Jackson do Belenzinho, ele preferiu pagar o chantagista mesmo assim. No total, foram mais de 50 000 reais, incluindo o pagamento de vinte parcelas de uma Mitsubishi Pajero.
A polícia terá de esclarecer todos os aspectos do relacionamento do padre Júlio Lancellotti com o chantagista, definido pelo advogado deste último como "amizade íntima". Foi chantagem? Foi presente? A polícia terá de esclarecer igualmente se o dinheiro usado para pagá-lo saiu de suas economias pessoais ou da entidade beneficente que ele dirige. O padre Júlio Lancellotti declarou que pode contar apenas com os 1 000 reais que recebe da Igreja. Mentira. Desde 1975, ele é funcionário contratado da Febem, e continua a ganhar do estado um salário de 2 480 reais. Além disso, a prefeitura repassa mensalmente à sua ONG, Bom Parto, 500 000 reais. É preciso saber se a Mitsubishi Pajero foi comprada com esse dinheiro.
No ano passado, o padre Júlio Lancellotti acusou a prefeitura paulistana de "práticas higienistas", por querer tirar os moradores de rua do centro da cidade, oferecendo-lhes "só um albergue". Pode-se argumentar que o padre Júlio Lancellotti ofereceu ao morador de rua que ameaçou denunciá-lo por pedofilia muito mais do que um albergue. Ofereceu-lhe o aluguel de uma casa, uma bicicleta, uma motocicleta, um terreno, uma viagem à praia e – ei-la – uma Mitsubishi Pajero. Bem que ele poderia estender sua "amizade íntima" a todos os moradores de rua da cidade.
VEJA publicou uma reportagem sobre a disputa entre a prefeitura paulistana e o padre Júlio Lancellotti. Ele chamou a revista de "autoritária". A petista Maria Vitória Benevides foi mais longe – chamou VEJA de "fascistóide". E o Observatório da Imprensa comentou a reportagem num artigo cheio de termos de duplo sentido, cujo significado só agora consegui entender: "o rabo do texto", "erguer o traseiro", "jornalismo de latrina", "o padre Júlio estende a mão", "via inversa", "amante da dialética", "iguaria de fel", "vanguarda do atraso".
O padre Júlio Lancellotti participou de todas as campanhas eleitorais de Lula. Em 2002, ao tratar do problema dos menores abandonados, Lula apresentou a seguinte solução: "Você pega o padre Júlio e bota ele para cuidar de criança, ele vai cuidar melhor do que qualquer aparelho de estado". Dependendo do que a polícia descobrir, talvez não seja uma idéia tão boa assim botar o padre Júlio para cuidar de criança.
(Veja, 24/10/07)
sexta-feira, outubro 05, 2007
O discurso de Cícero
O primeiro discurso de Cícero contra Catilina, proferido em 8 de Novembro de 63 a.C. no Templo de Júpiter no monte Capitolino de Roma.
Já não podes viver mais tempo conosco
I
Até quando, ó Catilina, abusarás da nossa paciência? Por quanto tempo ainda há-de zombar de nós essa tua loucura? A que extremos se há-de precipitar a tua audácia sem freio? Nem a guarda do Palatino, nem a ronda nocturna da cidade, nem os temores do povo, nem a afluência de todos os homens de bem, nem este local tão bem protegido para a reunião do Senado, nem o olhar e o aspecto destes senadores, nada disto conseguiu perturbar-te? Não sentes que os teus planos estão à vista de todos? Não vês que a tua conspiração a têm já dominada todos estes que a conhecem? Quem, de entre nós, pensas tu que ignora o que fizeste na noite passada e na precedente, em que local estiveste, a quem convocaste, que deliberações foram as tuas?
Oh tempos, oh costumes! O Senado tem conhecimento destes factos, o cônsul tem-nos diante dos olhos; todavia, este homem continua vivo! Vivo?! Mais ainda, até no Senado ele aparece, toma parte no conselho de Estado, aponta-nos e marca-nos, com o olhar, um a um, para a chacina. E nós, homens valorosos, cuidamos cumprir o nosso dever para com o Estado, se evitamos os dardos da sua loucura. à morte, Catilina, é que tu deverias, há muito, ter sido arrastado por ordem do cônsul; contra ti é que se deveria lançar a ruína que tu, desde há muito tempo, tramas contra todos nós.
Pois não é verdade que uma personagem tão notável. como era Públio Cipião, pontífice máximo. mandou, como simples particular, matar Tibério Graco, que levemente perturbara a constituição do Estado? E Catilina. que anseia por devastar a ferro e fogo a face da terra, haveremos nós, os cônsules, de o suportar toda a vida? E já não falo naqueles casos de outras eras, como o facto de Gaio Servílio Aala ter abatido, por suas próprias mãos, Espúrio Mélio e, que alimentava ideias revolucionárias. Havia, havia outrora nesta República, uma tal disciplina moral que os homens de coragem puniam com mais severos castigos um cidadão perigoso do que o mais implacável dos inimigos. Temos um decreto do Senados contra ti, Catilina, um decreto rigoroso e grave; não é a decisão clara nem a autoridade da Ordem aqui presente que falta à República; nós, digo-o publicamente, nós, os cônsules, é que faltamos.
II
Decidiu um dia o Senado que o cônsul Lúcio Opímio velasse para que a República não sofresse dano algum. Pois nem uma noite passou. Gaio Graco, apesar da sua tão nobre ascendência, de pai, de avô e de seus maiores, foi morto por causa de certas suspeitas de revolta; juntamente com os filhos foi executado Marco Fúlvio, um consular. Com um mesmo decreto do Senado, foi a República confiada aos cônsules Gaio Mário e Lúcio Valério. Acaso adiaram eles mais um dia sequer a pena de morte, por crime de lesa-república, a Lúcio Saturnino, um tribuno da plebe, e a Gaio Servílio, um pretor?
Nós, porém, há já vinte dias que consentimos no enfraquecimento do vigor de decisão destes homens. Temos um destes decretos do Senado, mas está fechado nos arquivos como espada metida em bainha; e, segundo esse decreto senatorial, tu, Catilina, deverias ter sido imediatamente condenado à morte. E eis que continuas vivo, e vivo, não para abdicares da tua audácia, mas para nela te manteres com inteira firmeza. É meu desejo, venerandos senadores, ser clemente; é meu desejo, no meio de tamanhos perigos da República, não parecer indolente; mas já eu próprio de inacção e moleza me acuso.
Há acampamentos em Itália contra o povo romano. estabelecidos nos desfiladeiros da Etrúria, aumenta em cada dia o número dos inimigos; e, no entanto, o general desses acampamentos e o comandante desses inimigos, eis que o vemos no interior das nossas muralhas e dentro do próprio Senado, urdindo a cada instante algum atentado contra a República. Se. neste momento eu te mandar prender, Catilina, se eu decretar a tua morte, o que sobretudo terei de temer, tenho a certeza, é que todos os bons cidadãos me censurem por ter actuado tarde, e não que haja alguém a dizer que usei de crueldade excessiva.
A mim, porém, aquilo que já há muito deveria ter sido feito, fortes razões me levam a não o fazer ainda. Hás-de ser morto, sim, mas só no momento em que já não for possível encontrar-se ninguém tão perverso, tão depravado, tão igual a ti, que não reconheça a inteira justiça desse acto.
Enquanto houver alguém que ouse defender-te, continuarás a viver, e a viver como agora vives, cercado pelas minhas muitas e fiéis guardas, para não poderes sublevar-te contra o Estado. È até os olhos e os ouvidos de muita gente, sem disso te aperceberes, te hão-de espiar e trazer vigiado como até hoje o têm feito.
III
Que há, pois, ó Catilina, que ainda agora possas esperar, se nem a noite com suas trevas pode manter ocultos os teus criminosos conluios, nem uma casa particular pode conter, com suas paredes, os segredos da tua conspiração, se tudo vem à luz do dia, se tudo irrompe em público? É tempo, acredita-me, de mudares essas disposições; desiste das chacinas e dos incêndios. Estás apanhado por todos os lados. Todos os teus planos são para nós mais claros que a luz do dia, e importa que os recordes comigo nesta hora.
Não te lembras de eu dizer no Senado, no dia 12 antes das Calendas de Novembro, que, em dia determinado, dia esse que havia de ser o sexto antes das Calendas de Novembro , haveria de pegar em armas Gaio Mânlio, um lacaio e instrumento da tua audácia? Enganei-me, porventura, ó Catilina, não só quanto a um acontecimento tão importante, tão horroroso e tão incrível, como também. o que é muito mais para admirar, quanto ao próprio dia? Fui eu ainda que disse no Senado teres tu fixado para o dia 5 antes das Calendas de Novembro a chacina da aristocracia. justamente na altura em que muitas das altas personalidades do Estado fugiram de Roma, não tanto por motivo de segurança pessoal, como para reprimirem as tuas maquinações. Serás capaz de negar que nesse mesmo dia, estando tu cercado pelas minhas guardas e pela minha vigilância, te não pudeste insurgir contra a República, quando tu, perante o afastamento dos restantes, dizias no entanto que a morte de quem tinha ficado, que éramos só nós, bastava para te contentar?
Pois quê? Quando tu, nas próprias Calendas de Novembro, estavas plenamente seguro de que tomarias Preneste num ataque nocturno, não deste conta, porventura, de que tinha sido por ordens minhas que aquela colónia fora guarnecida pelos meus destacamentos, sentinelas e rondas nocturnas? Nada fazes, nada intentas, nada imaginas que eu não só não oiça, mas veja e disso tenha pleno conhecimento.
IV
Recorda comigo, por fim, aquela noite famigerada de anteontem e logo verás que eu velo com mais ardor pela segurança do Estado que tu pela sua ruína. Afirmo que tu, na noite anterior a esta, vieste aos Cuteleiros (não vou falar por meias palavras), a casa de Marco Leca, e que no mesmo local se reuniu grande parte dos cúmplices da mesma criminosa loucura. Ousas, porventura, nega-lo? Porque te calas? Se o negas, eu to provarei, pois que vejo aqui presentes no Senado alguns dos que lá estiveram juntamente contigo.
Oh deuses imortais! Em que país do mundo estamos nós, afinal? Que governo é o nosso? Em que cidade vivemos nós? Estão aqui, aqui dentro do nosso número, venerandos senadores, neste Conselho mais sagrado e mais respeitável da face da terra, aqueles que meditam a morte de todos nós, aqueles que trazem no pensamento a destruição desta cidade e até a do mundo inteiro. É a estes que eu, como cônsul, tenho na minha frente e lhes peço conselho acerca dos interesses do Estado, a eles, que deveriam ser passados a fio de espada e que eu nem com a palavra atinjo ainda.
Estiveste, pois, Catilina, em casa de Leca nessa noite; procedeste à partilha das regiões da Itália; determinaste para onde gostarias que cada um partisse; escolheste quem deixarias em Roma, quem levarias contigo; designaste os bairros da cidade destinados a incêndio; afirmaste que, por ti, já estavas disposto a partir; disseste que ainda te demorarias, contudo, um pouco, porque eu continuava vivo. Encontraste dois cavaleiros romanos, para te aliviarem" desta preocupação e se comprometerem a assassinar-me no meu próprio leito nessa mesma noite, pouco antes da alvorada.
Tudo isto eu vim a saber mal tinha ainda sido dissolvida a vossa reunião; guarneci e reforcei a minha casa com mais guardas; e àqueles que tu me enviaras pela manhã para me saudarem, tranquei-lhes a porta quando eles chegaram, a esses mesmos cuja intenção de me visitarem àquela hora eu já havia previamente comunicado a muitas e das mais altas personalidades.
V
Sendo assim, prossegue, Catilina, o caminho encetado; sai da cidade de uma vez para sempre; as portas estão abertas; põe-te a caminho. Há muito que te reclamam como general supremo esses teus acampamentos manlianos. Leva também contigo todos os teus; se não todos, pelo menos o maior número possível. Limpa a cidade. Libertar-me-ás de um grande receio quando entre ti e mim um muro se levantar. Já não podes conviver por mais tempo connosco; não o suporto, não o tolero, não o consinto.
Grande deverá ser o nosso reconhecimento para com os deuses imortais, particularmente para com o próprio Júpiter Estátor aqui presente, o mais antigo protector desta cidade, por tantas vezes termos escapado a esta peste tão abominável, tão horrorosa e tão hostil à República. Nunca mais a suprema segurança do Estado deve ser posta em perigo por causa de um homem apenas. De tantas vezes que tu, Catilina, me armaste ciladas quando eu era cônsul designado, não foi com a guarda pública, mas com os meus próprios meios, que eu procurei defender-me. Quando, por ocasião dos últimos comícios consulares, tu pretendeste matar-me no Campo de Marte, a mim que era cônsul e aos teus competidores, reprimi os teus criminosos intentos com a ajuda e recursos dos amigos, sem proclamar oficialmente o estado de sítio; numa palavra, todas as vezes que me atacaste, foi por mim mesmo que te resisti, muito embora eu visse que a minha morte ficaria ligada a uma grande desgraça do Estado.
Mas agora é a toda a República que tu diriges abertamente o teu ataque; são os templos dos deuses imortais, são as casas da cidade, é a vida de todos os cidadãos, é a Itália inteira, é tudo isto que tu arrastas para a ruína e a devastação. E, uma vez que não ouso ainda pôr em prática o que se imporia em primeiro lugar e que é próprio destes poderes" e da tradição dos nossos maiores, tomarei uma posição mais moderada quanto ao rigor, porém mais útil no que toca à salvação comum. É que, se eu te matar, continuará na República o restante bando dos teus conjurados; mas, se tu saíres, como já há muito te estou convidando, a cidade ficará vazia dos teus sectários, dessa profunda sentina que empesta o Estado.
Então, Catilina, que se passa? Hesitas em fazer por minha ordem o que tu já te dispunhas a realizar por tua livre vontade? É a um inimigo público que o cônsul manda sair da cidade. Perguntas-me se para o exílio? Não to ordeno, mas, se pedes o meu parecer, aconselho-to.
VI
Que há, ó Catilina, que ainda te possa causar prazer nesta cidade, em que não há ninguém, fora desta conjuração de homens depravados, que te não tema, ninguém que te não deteste? Que nódoa de escândalos familiares não foi gravada a fogo na tua. vida? Que ignomínia de vida particular não anda ligada à tua reputação? Que sensualidade esteve longe de teus olhos? Que acção infamante deixaram de perpetrar as tuas mãos algum dia? Que torpeza esteve ausente de todo o teu corpo? Que jovem haverá a quem não tenhas ilaqueado nas seduções da tua imoralidade, guiado o ferro na rebeldia ou o archote. na libertinagem?
Pois quê? Há pouco, quando, com a morte da tua primeira mulher, esvaziaste a tua casa com vista a um novo casamento, não acumulaste ainda sobre este delito um outro atentado inacreditável, que eu não refiro e acho melhor deixar passar em silêncio, para que não conste que nesta cidade se verificou a barbaridade de um crime tamanho, ou que este ficou sem castigo? Nem menciono a perda dos teus haveres, que tu verás todos confiscados nos próximos Idos; refiro-me a factos que dizem respeito não à infâmia pessoal dos teus vícios, não à tua penúria doméstica e à tua má fama, mas, sim, aos superiores interesses do Estado e à vida e segurança de todos nós.
Podes tu, Catilina, sentir prazer na luz deste dia ou no ar deste céu que respiras, ao saberes que ninguém dos presentes desconhece que, na véspera das Calendas de Janeiro", durante o consulado de Lépido e Tulo, te apresentaste armado no local dos comícios do povo; que tinhas um grupo de homens preparado para dar a morte aos cônsules e aos principais da cidade e que não foi nenhuma reconsideração da tua parte nem o teu medo, mas, sim, a deusa Fortuna do povo romano que impediu o crime da tua loucura? E já nem conto pois que não são nem desconhecidos nem poucos os delitos cometidos depois quantas vezes, sendo eu cônsul designado, quantas vezes mesmo durante o meu consulado, me tentaste matar! Quantos golpes, vibrados de tal maneira, que parecia impossível escapar-lhes, eu não evitei com um pequeno desvio ou, como costuma dizer-se, só com o corpo! Nada adiantas, nada consegues, e, contudo, não desistes de tentar e de querer. Quantas vezes já esse punhal de assassino te foi arrancada das mãos! Quantas vezes, por um mero acaso, ele te escapou e caiu aos pés, esse punhal que, sinceramente, não sei em que iniciações mistéricas e a que deus o terás tu consagrado, para julgares necessário cravá-lo no corpo do cônsul.
VII
E agora, que vida é esta que levas? Desejo neste momento falar-te de modo que se veja que não sou movido pelo rancor, que eu te deveria ter, mas por uma compaixão que tu em nada mereces. Entraste há pouco neste Senado. Quem, dentre esta tão vasta assembleia, dentre todos os teus amigos e parentes, te saudou? Se isto, desde que há memória dos homens, a ninguém aconteceu, ainda esperas que te insultem com palavras, quando te encontras esmagado pela pesadíssima condenação do silêncio? E que dizes ao facto de, à tua chegada, esse lugar ter ficado ao abandono, e ao facto de todos os consulares, que tantas vezes figuraram nos teus planos de assassínio, mal te havias sentado a seu lado, terem deixado deserta e vazia essa zona da bancada? Com que coragem, afinal, julgas tu que hás-de suportar tal afronta?
Se os meus escravos me temessem da maneira que todos os teus concidadãos te receiam, eu, por Hércules!, sentir-me-ia compelido a deixar a minha casa; e tu, a esta cidade, não pensas que é teu dever abandoná-la? E se eu me visse, ainda que injustamente, tão gravemente suspeito e detestado pelos meus concidadãos, preferiria ficar privado da sua vista a ser alvo do olhar hostil de toda a gente; e tu, apesar de reconheceres, pela consciência que tens dos teus crimes, que é justo e de há muito merecido o ódio que todos nutrem por ti, estás a hesitar em fugir da vista e da presença de todos aqueles a quem tu atinges na alma e no coração? Se teus pais te temessem e odiassem e tu não os pudesses apaziguar de modo nenhum, retirar-te-ias, penso eu, do seu olhar para outra qualquer parte. Pois agora é a Pátria, mãe comum de todos nós, que te odeia e teme, e sabe que desde há muito não pensas noutra coisa que não seja o seu parricídio; e tu, nem respeitarás a sua autoridade, nem acatarás as suas decisões, nem te assustarás com o seu poder?
Eis que ela a ti se dirige, ó Catilina, e, no seu silêncio, como que fala:
"Há vários anos já que nenhum crime se viu cometido senão por ti; nenhum escândalo, sem ti; só tu cometeste, sem castigo e com toda a liberdade, o assassínio de muitos cidadãos, a opressão e saque dos nossos aliados; só tu te atreveste não só a desprezar, mas até a subverter e a infringir as leis e os tribunais. Esses crimes de outrora, posto que não devessem ter sido suportados, eu os suportei como pude; mas agora, estar eu toda em sobressalto somente por causa de ti, ser Catilina objecto de medo ao mínimo ruído que surja, não se poder descobrir conjura alguma tramada contra mim em que não esteja implicada a tua intenção criminosa, não, isso é que não devo suportar. Por isso, vai-te daqui e afasta de mim este receio; se ele tem fundamento, para eu não andar oprimida; se é ilusório, para eu, enfim, deixar de uma vez esta vida de medo."
VIII
Se tais palavras, como disse, a Pátria te pudesse dirigir, não deveria ela conseguir o seu intento, muito embora não pudesse fazer uso da força?
E que dizer do facto de tu próprio te haveres entregado sob guarda provisória e teres dito, a fim de evitares suspeitas, que desejavas ficar em casa de Mânio Lépido? Como este não te recebeu, até a mim tiveste cara de te dirigir e de me pedir que te guardasse em minha casa. E, como também de mim levaste a resposta de que eu não podia de modo nenhum sentir-me seguro contigo dentro das mesmas paredes, porquanto já eu corria grande perigo pelo facto de estarmos metidos dentro das mesmas muralhas, foste a casa do pretor Quinto Metelo. E, repudiado por ele, imigraste para casa do teu comparsa Marco Metelo, esse grande homem de quem pensaste, claro está, que havia de ser o mais cuidadoso em te guardar, o mais esperto para te vigiar e o mais enérgico para te defender. Mas em que medida parece justo estar afastado da prisão e das cadeias quem se julgou, por si mesmo, digno de detenção? Uma vez que assim é, Catilina, se não és capaz de esperar pela morte de coração resignado. ainda hesitas em partir daqui para outras terras e em entregar ao exílio e à solidão essa vida, subtraindo-a a muitos castigos justos e merecidos?
"Propõe-no ao Senado", dizes tu. É isto, com efeito, o que reclamas, e dizes que, se esta Ordem de senadores vier a decidir que é sua vontade a tua partida para o exílio, estás na disposição de obedecer. Não, não vou propor uma coisa que é contra os meus princípios, mas, sim, farei com que vejas o que estes pensam acerca de ti. Sai de Roma, Catilina; liberta o Estado destas apreensões; parte para o exílio, se é esta a palavra de ordem que esperas. Então? Não vês? Não dás conta do silêncio dos presentes? Se estão calados, é porque consentem. Porque esperas pela autoridade das palavras, quando percebes muito bem pelo seu silêncio o que têm na vontade?
Ora, se eu tivesse dito estas mesmas palavras a um jovem tão cheio de qualidades como Públio Séstio aqui presente, se as tivesse dirigido a Marco Marcelo, varão da mais alta virtude, já o Senado, apesar de eu ser cônsul, teria, com plena justiça, lançado contra mim, neste mesmo templo, a sua força e o seu poder. A teu respeito, porém, Catilina, a sua imobilidade é uma aprovação; o seu consentimento, um decreto; o seu silêncio, um clamor. E não apenas estes aqui presentes, cuja autoridade tens, pelos vistos, em grande estima, mas a vida em vil apreço; também aqueles cavaleiros romanos, homens da maior honestidade e excelência, e os restantes cidadãos tão valorosos que de pé circundam este Senado, e de quem tiveste ensejo, há momentos, de ver não só a afluência, mas até de reconhecer claramente as disposições e ouvir distintamente os clamores. É com dificuldade que desde há muito detenho suas mãos e suas armas aparelhadas contra ti; mas, se abandonares estes sítios que há largo tempo pretendes devastar, é com facilidade que os poderei levar a escoltarem-te até às portas da cidade.
IX
Mas de que servem as minhas palavras? A ti, como pode alguma coisa fazer-te dobrar? Tu, como poderás algum dia corrigir-te? Tu, como tentarás planear alguma fuga? Tu. como podes pensar nalgum exílio? Oxalá os deuses imortais te inspirassem tal propósito, muito embora eu veja que, se tu, apavorado com as minhas palavras, te decidires a partir para o exílio, uma enorme tempestade de ódios ameaça desabar sobre nós, se não no tempo presente, por causa da fresca lembrança dos teus crimes, pelo menos para o futuro. Vale, porém, a pena, desde que essa desgraça seja particular e se não misture com os perigos do Estado. Mas a ti, o que não se deverá exigir é que te afastes dos teus vícios, que alimentes profundo receio dos castigos da lei, que recues perante as conjunturas críticas da República. Nem tu, Caulina, és de molde que a vergonha te afaste da infâmia; ou o medo, do perigo; ou a razão, da loucura. Por isso mesmo, parte, como já tantas vezes te disse, e, se pretendes, conforme apregoas, atear o ódio público contra mim, teu inimigo, avança já direito ao exílio; se o fizeres, muito me custará suportar a censura dos homens; se partires para o exílio por ordem do cônsul, muito me custará sentir o fardo dessa impopularidade. Se, porém, preferes servir o meu prestígio e a minha glória, sai juntamente com o indesejável bando dos celerados, refugia-te junto de Mânlio, convoca os cidadãos perversos, separa-te dos homens de bem, move guerra contra a Pátria, exulta com uma sacrílega revolta de bandidos, para que se veja que não foste expulso por mim para o meio de estranhos, mas, sim, convidado a partir para junto dos teus. De resto, para quê convidar-te a isso, uma vez que tenho conhecimento de que tu enviaste homens à frente para te esperarem armados junto do Fórum de Aurélio, e sei que tu combinaste e fixaste a data com Mânlio, e sei que até enviaste à frente aquela famosa águia de prata", uma águia que, assim o espero, há-de tornar-se ruinosa e fatal para ti e para todos os teus, uma águia à qual esteve levantado em tua casa um criminoso santuário? Como é que tu poderás passar mais tempo sem aquela que costumavas adorar ao partir para a carnificina, tu que tantas vezes fizeste passar essa dextra sacrílega, do seu altar para a chacina de cidadãos?
X
Irás, enfim, de uma vez para sempre, para onde há muito tempo te arrastava essa tua paixão desenfreada. e louca, pois não é pesar o que esta partida te causa, mas um estranho e inacreditável prazer. Foi para semelhante loucura que a natureza te gerou, te preparou a vontade, e o destino te guardou. Tu, não só nunca desejaste o tempo de paz, mas nem sequer uma guerra que não fosse criminosa. Topaste uma corja de bandidos formada de gente perversa, enjeitada não só de toda a sorte, mas até de toda a esperança. Ah! que alegria não experimentarás, com que júbilo não hás-de exultar, com que. prazer tamanho andarás em orgiástico delírio, quando, entre o número tão avultado dos teus, não conheceres nem vires um só homem de bem! Foi por afeição a tal género de vida que se praticaram aquelas tuas proezas de que se fala: permanecer prostrado no chão, ou para espreitar o momento azado para algum atentado contra o pudor, ou mesmo para cometer algum crime; passar as noites em claro lançando armadilhas não só ao sono dos maridos, mas também aos haveres da gente pacífica? Tens aí onde possas ostentar essa tua famosa capacidade em suportar a fome, o frio, a carência de tudo; e em breve perceberás que foi isso que deu cabo de ti.
Quando te rejeitei do consulado, uma coisa consegui pelo menos: que tu antes pudesses atacar a República como exilado do que maltratá-la como cônsul, e que a tua criminosa empresa mais se pudesse chamar uma arruaça de bandidos que uma guerra civil.
XI
E agora, venerandos senadores, a fim de eu poder arredar e esconjurar de. mim uma censura, de certo modo justa, da Pátria, escutai, por favor, com atenção, o que vou dizer, e gravai-o bem fundo no vosso coração e na vossa memória. Porquanto, se a Pátria, que é para mim mais cara que a própria vida, se a Itália inteira, se toda a República me dissesse:
"Que estás tu a fazer, Marco Túlio? Então tu vais consentir que aquele que provaste ser um inimigo público, que tu vês como o futuro comandante de uma revolta, que tu sabes ser esperado como general no acampamento dos inimigos, ser o instigador de um acto criminoso, o cabecilha de uma conspiração, um agitador de escravos e de cidadãos perversos, a esse vais tu deixá-lo partir de tal maneira, que nem parece ter sido por ti expelido para fora da cidade, mas, sim, impelido contra ela? Então, não vais mandar que o ponham a ferros, que o arrastem para a morte, que o imolem no derradeiro suplício?
O que te impede, afinal? Será a tradição dos antigos? Mas nesta República até simples particulares puniram muitíssimas vezes com a morte cidadãos perniciosos. Serão, porventura, as leis que foram propostas acerca do suplício dos cidadãos romanos? Mas nunca., nesta cidade, os que atraiçoaram a Pátria continuaram na posse dos direitos de cidadania. Ou é a impopularidade do futuro que tu receias? Bela maneira essa de agradeceres ao povo romano, ele que te elevou tão cedo ao supremo poder através de todos os graus da magistratura, sendo tu um homem conhecido apenas pela tua pessoa sem nenhuma recomendação de antepassados - se, por causa da impopularidade ou do receio de algum perigo, desprezas a salvação dos teus concidadãos!
Mas, se há algum medo de cair em desagrado, dever-se-á, porventura, ter mais receio da antipatia motivada pelo rigor e pela fortaleza que pela preguiça e pelo desleixo? Ou, quando a Itália for devastada pela guerra, quando as cidades forem arrasadas, quando as casas estiverem a arder, acaso pensas tu que nessa altura não hás-de ser inteiramente devorado pelo fogo do ódio popular?"
XII
A estes tão augustos clamores da República e ao pensamento daqueles homens que sentem desse mesmo modo responderei em poucas palavras. Se eu, venerandos senadores, considerasse que a melhor atitude era castigar Catilina com a morte, não concederia a esse gladiador nem mais uma hora de vida. É que, se homens da mais alta categoria e cidadãos dos mais ilustres não só se não mancharam, mas até colheram honra no sangue de Saturnino, e dos Gracos, e de Flaco, e de muitos ainda mais antigos, certamente eu não teria que recear que, com a morte deste parricida dos seus concidadãos, sobre mim se derramasse qualquer ódio da posteridade. E, mesmo que este me estivesse particularmente iminente, sempre tive, apesar disso, a convicção de que o ódio alcançado pelo mérito não é ódio, é glória.
Há, todavia, nesta Ordem de senadores, alguns que, ou não vêem aquilo que nos ameaça, ou fingem ignorar aquilo que vêem; estes, pela moleza das suas decisões, alimentaram a esperança de Catilina e deram força à conjuração nascente, não acreditando nela; e, por sua influência, muitos; não apenas os perversos, mas ainda os mal informados, diriam, se eu tivesse punido Catilina, que o tinha feito com crueldade e tirania.
Ora eu penso que, se este der entrada nos acampamentos de Mânlio, que são o seu objectivo, não haverá ninguém tão ingénuo que não veja ter-se armado uma conjuração, ninguém tão descarado que o não confesse. Por outro lado, penso que, se for condenado à morte apenas Catilina aqui presente, este flagelo que afecta o Estado pode reprimir-se por um pouco, não suprimir sem para sempre. Mas, se ele se desterrar a si mesmo e levar os seus partidários consigo, e se recolher, de toda a parte, os demais naufragados da vida e os congregar no mesmo lugar, ficará extinta e debelada não apenas esta já tão adiantada doença do Estado, mas até a raiz e o germe de todos os males.
XIII
É que nós, venerandos senadores, vivemos desde há muito envolvidos nestes perigos e nas ciladas de uma conspiração, mas, não sei como, a maturação de todos os crimes e da antiga loucura e audácia veio a rebentar no tempo do nosso consulado. E se, de tamanho bando de salteadores, se suprimir apenas este, poderá parecer talvez que ficamos, por um pequeno espaço de tempo, aliviados da apreensão e do medo; o perigo, porém, há-de permanecer e ficará profundamente inculcado nas veias e nas entranhas da República. Tal como, muitas vezes, as pessoas atingidas por uma doença grave, se, no tumultuar do ardor da febre, beberam água gelada, parecem aliviadas nos primeiros momentos e logo depois o mal as oprime mais forte e violento, do mesmo modo esta doença que existe no seio do Estado. aliviada embora pelo suplício daquele que ali vedes, agravar-se-á com mais violência ainda se sobreviverem os restantes conjurados.
Por tudo isto, que os perversos se retirem, se separem dos homens de bem, se juntem num só lugar e que uma muralha, enfim, como já o proclamei tantas vezes, os mantenha separados de nós; que deixem de armar traições ao cônsul na sua própria casa, de bloquear o tribunal do pretor urbano, de assediar com armas a Cúria, de preparar dardos incendiários e archotes para deitar fogo à cidade; numa palavra, que na fronte de cada um se mostrem gravados os seus sentimentos políticos. Garanto-vos, senadores egrégios, que a nossa vigilância de cônsules há-de ser bastante, e espero que haja em vós tal autoridade, nos cavaleiros romanos tamanha coragem, em todos os homens de bem a conformidade de sentimentos necessária para poderdes ver que, com a retirada de Catilina, tudo fica descoberto, esclarecido, subjugado, punido.
Com estes presságios, Catilina, e para suprema salvação do Estado, para tua desgraça e ruína e para perdição daqueles que a ti se ligaram por toda a espécie de crimes e parricídios, parte para essa guerra ímpia e nefanda. E tu, Júpiter, cujo culto foi estatuído por Rómulo sob os mesmos auspícios, desta cidade, tu a quem com justiça chamamos o Sustentáculo desta urbe e deste império, hás-de relegar este assassino e os seus comparsas para longe do teu templo e dos restantes, das casas de Roma e das suas muralhas, da vida e dos haveres de toda a população; e àqueles que odeiam os homens de bem, aos inimigos da Pátria, aos salteadores da Itália, unidos entre si por um pacto criminoso e uma aliança nefanda, a esses, vivos e mortos, hás-de puni-los com suplícios eternos.
quinta-feira, outubro 04, 2007
Francisco de Assis
04/10
São Francisco de Assis
São Francisco de Assis nasceu na cidade de Assis, na Itália, em 1181. Filho de um rico comerciante de tecidos, Francisco Bernardone, nome de batismo, tirou todos os proveitos de sua condição social vivendo entre os amigos boêmios. Tentou como o pai, seguir a carreira de comerciante, mas a tentativa foi em vão.
Sonhou então, com as honras militares. Aos vinte anos, alistou-se no exército de Gualtieri de Brienne que combatia pelo papa, mas em Spoleto teve um sonho revelador. Foi convidado a trabalhar para “o Patrão e, não para o servo”.
Suas revelações não parariam por aí. Em Assis, o santo dedicou-se ao serviço de doentes e pobres. Um dia do outono de 1205, enquanto rezava na igrejinha de São Damião, ouviu a imagem de Cristo lhe dizer: “Francisco, restaura minha casa decadente”.
O chamado, ainda pouco claro para São Francisco, foi tomado no sentido literal e o santo vendeu as mercadorias da loja do pai para restaurar a igrejinha. Como resultado, o pai de São Francisco, indignado com o ocorrido, deserdou-o
Com a renúncia definitiva aos bens materiais paternos, São Francisco deu início à sua vida religiosa, “unindo-se à Irmã Pobreza”.
O Ordem dos Frades Menores teve início com a autorização do papa Inocêncio III à Francisco e onze companheiros de tornarem-se pregadores itinerantes, levando cristo ao povo com simplicidade e humildade.
O trabalho foi tão bem realizado que, por toda a Itália, os irmãos chamavam o povo à fé e à penitência. A sede da Ordem, localizada na capela de Ponciúncula de Santa Maria dos Anjos, próxima à Assis, estava superlotada de candidatos ao sacerdócio. Para suprir a necessidade do espaço, foi aberto outro convento em Bolonha.
Um fato interessante entre os pregadores itinerantes foi que poucos, dentre eles, tomaram as ordens sacras. São Francisco de Assis, por exemplo, nunca foi sacerdote.
Em 1212, São Francisco fundou com sua fiel amiga Santa Clara, a Ordem das Damas Pobres ou Clarissas.
Já em 1217, o movimento franciscano começou a se desenvolver como uma ordem religiosa. E como já havia ocorrido anteriormente, o número de membros era tão grande que foi necessária a criação de províncias que se encaminharam por toda a Itália e para fora dela, chegando inclusive à Inglaterra.
Por um momento da história, Francisco renunciou à liderança da ordem e, em sua ausência, os irmãos criaram algumas inovações.
Apoiado pelo amigo cardeal Ugolino, em 1221, São Francisco de Assis apresentou uma versão revisada de sua regra de Pobreza, Humildade e Liberdade evangélica e, após feitas algumas modificações a regra foi aprovada.
A devoção a Deus não se resumiria em sacrifícios, mas também em dores e chagas. Enquanto pregava no Monte Alverne, nos Apeninos, em 1224, apareceram-lhe no corpo as cinco chagas de Cristo, no fenômeno denominado “estigmatização”.
Os estigmas não só lhe apareciam no corpo, como foram sua grande fonte de fraqueza física e, dois anos após o fenômeno, São Francisco de Assis foi chamado ao Reino dos Céus.
Autor do Cântico do Irmão Sol, considerado um poeta e amante da natureza, São Francisco foi canonizado dois anos após sua morte. Em 1939, o papa Pio XII tributou um reconhecimento oficial ao “mais italiano dos santos e mais santo dos italianos”, proclamando-o padroeiro da Itália.
(Fonte: Site do Pe.Marcelo Rossi)
São Francisco de Assis
São Francisco de Assis nasceu na cidade de Assis, na Itália, em 1181. Filho de um rico comerciante de tecidos, Francisco Bernardone, nome de batismo, tirou todos os proveitos de sua condição social vivendo entre os amigos boêmios. Tentou como o pai, seguir a carreira de comerciante, mas a tentativa foi em vão.
Sonhou então, com as honras militares. Aos vinte anos, alistou-se no exército de Gualtieri de Brienne que combatia pelo papa, mas em Spoleto teve um sonho revelador. Foi convidado a trabalhar para “o Patrão e, não para o servo”.
Suas revelações não parariam por aí. Em Assis, o santo dedicou-se ao serviço de doentes e pobres. Um dia do outono de 1205, enquanto rezava na igrejinha de São Damião, ouviu a imagem de Cristo lhe dizer: “Francisco, restaura minha casa decadente”.
O chamado, ainda pouco claro para São Francisco, foi tomado no sentido literal e o santo vendeu as mercadorias da loja do pai para restaurar a igrejinha. Como resultado, o pai de São Francisco, indignado com o ocorrido, deserdou-o
Com a renúncia definitiva aos bens materiais paternos, São Francisco deu início à sua vida religiosa, “unindo-se à Irmã Pobreza”.
O Ordem dos Frades Menores teve início com a autorização do papa Inocêncio III à Francisco e onze companheiros de tornarem-se pregadores itinerantes, levando cristo ao povo com simplicidade e humildade.
O trabalho foi tão bem realizado que, por toda a Itália, os irmãos chamavam o povo à fé e à penitência. A sede da Ordem, localizada na capela de Ponciúncula de Santa Maria dos Anjos, próxima à Assis, estava superlotada de candidatos ao sacerdócio. Para suprir a necessidade do espaço, foi aberto outro convento em Bolonha.
Um fato interessante entre os pregadores itinerantes foi que poucos, dentre eles, tomaram as ordens sacras. São Francisco de Assis, por exemplo, nunca foi sacerdote.
Em 1212, São Francisco fundou com sua fiel amiga Santa Clara, a Ordem das Damas Pobres ou Clarissas.
Já em 1217, o movimento franciscano começou a se desenvolver como uma ordem religiosa. E como já havia ocorrido anteriormente, o número de membros era tão grande que foi necessária a criação de províncias que se encaminharam por toda a Itália e para fora dela, chegando inclusive à Inglaterra.
Por um momento da história, Francisco renunciou à liderança da ordem e, em sua ausência, os irmãos criaram algumas inovações.
Apoiado pelo amigo cardeal Ugolino, em 1221, São Francisco de Assis apresentou uma versão revisada de sua regra de Pobreza, Humildade e Liberdade evangélica e, após feitas algumas modificações a regra foi aprovada.
A devoção a Deus não se resumiria em sacrifícios, mas também em dores e chagas. Enquanto pregava no Monte Alverne, nos Apeninos, em 1224, apareceram-lhe no corpo as cinco chagas de Cristo, no fenômeno denominado “estigmatização”.
Os estigmas não só lhe apareciam no corpo, como foram sua grande fonte de fraqueza física e, dois anos após o fenômeno, São Francisco de Assis foi chamado ao Reino dos Céus.
Autor do Cântico do Irmão Sol, considerado um poeta e amante da natureza, São Francisco foi canonizado dois anos após sua morte. Em 1939, o papa Pio XII tributou um reconhecimento oficial ao “mais italiano dos santos e mais santo dos italianos”, proclamando-o padroeiro da Itália.
(Fonte: Site do Pe.Marcelo Rossi)
sábado, setembro 29, 2007
O caixa 2 da turma de Ideli
A senadora Ideli: negociações para liberação de verbas dentro do gabinete
O Senado vai instalar nesta semana uma CPI para investigar entidades e organizações não-governamentais suspeitas de desviar recursos públicos. Somente nos últimos oito anos, o governo destinou 33 bilhões de reais às chamadas ONGs por meio de convênios e emendas parlamentares. Seria uma forma ágil e eficiente de fazer chegar às comunidades mais carentes os programas sociais. Sem fiscalização adequada, muitas dessas organizações se transformaram em máquinas de fraudes que enriquecem seus dirigentes e financiam campanhas políticas regionais.
Em Santa Catarina, a Polícia Federal está investigando um caso exemplar. A Federação dos Trabalhadores na Agricultura Familiar da Região Sul (Fetraf-Sul) recebeu 5 milhões de reais para promover cursos de treinamento profissional. Parte do dinheiro, já se sabe, foi parar na campanha política de um deputado do PT. Para justificarem os gastos, os dirigentes da federação falsificaram planilhas e criaram alunos-fantasma. O que mais chama atenção no caso, porém, é o eixo entre os principais envolvidos na fraude. Todos são correligionários, amigos ou assessores da senadora catarinense Ideli Salvatti, líder do PT no Senado.A investigação da polícia se concentra em dezoito convênios firmados entre a Fetraf e os ministérios do Desenvolvimento Agrário, do Trabalho, da Agricultura e da Pesca – que lhe destinaram 5,2 milhões de reais entre maio de 2003 e março de 2007. O inquérito, que já tem mais de 300 páginas, recolheu provas que permitem concluir que a federação usou uma tecnologia de fraude muito conhecida desde os tempos em que o ex-tesoureiro do PT Delúbio Soares era um simplório conselheiro do Fundo de Amparo ao Trabalhador. Usando a influência política, os dirigentes conseguem prioridade em assinatura de convênios com órgãos públicos. Há no esquema sempre um parlamentar amigo que, por meio de emendas, assegura recursos no Orçamento para os tais programas sociais. Nos ministérios, correligionários em postos-chave são os responsáveis pela seleção das parcerias. Depois, cabe às entidades escolhidas superfaturar contratos, inventar serviços e embolsar o dinheiro, às vezes tudo, às vezes apenas uma parte para simular que alguma coisa foi feita. A Fetraf, segundo a polícia, seguiu à risca essa cartilha.
A sede da Fetraf, em Chapecó: dinheiro só após a chegada do PT ao governo
A Fetraf foi criada em 2001 por petistas ligados à senadora Ideli Salvatti, mas sua importância social só começou a ser reconhecida depois do governo Lula. Um dos convênios já esmiuçados pela polícia foi assinado em 2003 com o Ministério do Desenvolvimento Agrário, que liberou 1 milhão de reais para a entidade promover o treinamento de trabalhadores rurais em Chapecó, interior de Santa Catarina. Na época, o coordenador da entidade chamava-se Dirceu Dresch, um petista do grupo político de Ideli Salvatti. Dois mil trabalhadores rurais participaram do curso. A maioria, descobriu-se agora, era fantasma. Para fazer de conta que o curso existiu, a Fetraf apresentou uma lista de estudantes, com nome, CPF e endereço dos alunos. A polícia foi checar e descobriu que muitos não existiam, outros nunca ouviram falar do curso, alguns nem sequer moravam na região e os poucos que disseram ter freqüentado aulas – pessoas ligadas à federação, é claro – assinavam a mesma lista de presença várias vezes. Nos outros dezessete convênios assinados com a instituição, a história se repetiu. VEJA localizou no interior de Santa Catarina o agricultor Jackson Luiz Oldra. Segundo a polícia, ele foi usado pela federação para "captar" alunos para o curso de técnicas de plantio e colheita para jovens. Sua tarefa para conseguir o diploma de jovem agricultor era pegar as listas em branco na sede da federação, em Chapecó, e devolvê-las completamente preenchidas. "Peguei assinatura até com meu avô e minha avó", conta o rapaz, que já foi intimado a depor na PF. "A gente faz as coisas para ajudar e acaba se metendo em rolo", reclama. Para o Ministério do Trabalho, Ernesto, de 67 anos, e Ana, de 63, constam das estatísticas como "jovens" agricultores. A federação embolsou o dinheiro.
Os convênios exibem outras fraudes grotescas. Para dar aulas a alunos-fantasma, nada mais natural que se chame um professor com conhecimentos especiais. Um dos convocados para a missão exibe um currículo surpreendente. Marcelino Pedrinho Pies foi contratado em abril do ano passado para coordenar um curso destinado a pequenos agricultores, recebendo 4.000 reais por mês. O professor Marcelino tem um salário maior que o de muito doutor de universidade, mas seu currículo também é ímpar. Na mesma época da contratação, ele fez um acordo com a Justiça para doar cestas básicas a uma instituição de caridade. Voluntário? Não. Marcelino, ex-tesoureiro do PT do Rio Grande do Sul, confessou que usou dinheiro do valerioduto para pagar dívidas eleitorais do partido em 2002 quando o candidato ao governo era Tarso Genro, hoje ministro da Justiça. O dinheiro da Fetraf, que deveria estar formando trabalhadores, vem sendo usado para subsidiar também a pena de criminosos. A Polícia Federal estima que, no mínimo, 60% dos recursos destinados a treinar os trabalhadores acabaram nos bolsos ou nas campanhas políticas dos marcelinos da federação. Há evidências que sugerem isso – e muito mais.Jackson, escalado para fraudar as listas: assinatura dos avós em curso para jovensDirceu Dresch, ex-líder da Fetraf no período em que foi assinada a maioria dos convênios, conseguiu se eleger deputado estadual pelo PT no ano passado. Antes disso, ele foi coordenador das campanhas de Ideli Salvatti. Eles pertencem à mesma corrente política do partido. Em 2002, Ideli candidatou-se ao Senado e Dresch a deputado estadual. Fizeram campanha juntos. Ela venceu a disputa e ele não se elegeu. No ano passado, Ideli, que desistiu de se candidatar ao governo em favor do então ministro da Pesca, José Fritsch (com quem a Fetraf assinou um convênio), deu uma mãozinha a Dresch, inclusive destacando Lizeu Mazzioni, um de seus assessores em Brasília, para coordenar a campanha. Ideli e Dresch são sócios na indicação do delegado do Ministério do Desenvolvimento Agrário Jurandi Teodoro Gugel, que assinou doze convênios com a Fetraf e ocupou o cargo até julho passado. Antes do ministério, Gugel era assessor lotado no gabinete de Ideli. Em novembro de 2004, Dirceu, Jurandi e Lizeu estiveram juntos em uma reunião na antiga sede da Fetraf, onde discutiram o apoio político da federação e seus filiados a uma eventual campanha de Ideli ao governo. Em troca, a senadora apresentaria emendas para sindicatos e prefeituras amigas da federação.A campanha de Ideli ao governo não prosperou, mas as tratativas sobre as emendas continuaram. Documentos em poder da polícia revelam que, em 12 de setembro de 2005, o então coordenador de política sindical da Fetraf, Daniel Kothe, e o chefe-de-gabinete de Ideli em Brasília, Paulo Argenta, discutiram as formas de viabilizar os recursos para a federação. Em uma mensagem eletrônica trocada entre os dois gabinetes, chegaram a combinar até o destino das emendas. "Ficamos no aguardo dos encaminhamentos necessários para efetivarmos a aplicação desses recursos na base", escreveu Daniel Kothe, que substituiu Dirceu Dresch como líder da Fetraf-Sul. A mensagem deixa claro que as estratégias de ação da entidade e os projetos financeiros passaram pelo gabinete de Ideli. Os fatos mostram que a relação entre a senadora e o grupo que controla a federação é muito estreita. Além de Jurandi e Lizeu, já houve mais gente do gabinete ligada à Fetraf. Cleci Dresch, mulher do deputado Dresch, foi funcionária do gabinete da senadora até março deste ano. O que ela fazia? "Nunca fui a Brasília. Eu quero que você converse com o meu marido", limitou-se a dizer. O deputado Dresch não quis conversar. Um ex-auxiliar dele confirmou à polícia que parte do dinheiro desviado da federação foi usada em sua campanha política. "Os indícios de fraude e desvio de dinheiro são muito fortes", confirma o delegado Misael Mazzetti, da Polícia Federal.O deputado Dresch, beneficiário do caixa dois da Fetraf, e sua mulher, Cleci, funcionária-fantasma do gabinete de Ideli
A proximidade entre a senadora Ideli Salvatti e representantes de ONGs suspeitas não é novidade. Há outro alvo da CPI que também fica em Santa Catarina, também é comandado por gente ligada a Ideli e também tem uma carteira de milhões de reais em convênios com o governo. Assim como a Fetraf, a Unitrabalho recebeu 18 milhões de reais entre 2003 e 2006 para qualificar trabalhadores. A ONG chamou atenção no ano passado, quando o seu dirigente maior, Jorge Lorenzetti, ex-churrasqueiro do presidente Lula, amigo da senadora e funcionário do comitê de reeleição, foi flagrado em uma operação para comprar um dossiê contra adversários. Nunca se descobriu a origem do dinheiro apreendido com o grupo. A senadora Ideli emprega em seu gabinete Natália Lorenzetti, filha do ex-churrasqueiro petista. Procurada, a senadora não quis se pronunciar. Por intermédio de sua assessoria, mandou dizer que não tem nenhuma relação formal nem com a Fetraf nem com Dresch, e que as emendas que apresentou visaram apenas a beneficiar a agricultura familiar. Mandou dizer ainda que nunca foi citada pela Justiça ou pelo Ministério Público em irregularidade alguma envolvendo a Fetraf ou qualquer outra entidade. É verdade. Ainda não foi.
O Senado vai instalar nesta semana uma CPI para investigar entidades e organizações não-governamentais suspeitas de desviar recursos públicos. Somente nos últimos oito anos, o governo destinou 33 bilhões de reais às chamadas ONGs por meio de convênios e emendas parlamentares. Seria uma forma ágil e eficiente de fazer chegar às comunidades mais carentes os programas sociais. Sem fiscalização adequada, muitas dessas organizações se transformaram em máquinas de fraudes que enriquecem seus dirigentes e financiam campanhas políticas regionais.
Em Santa Catarina, a Polícia Federal está investigando um caso exemplar. A Federação dos Trabalhadores na Agricultura Familiar da Região Sul (Fetraf-Sul) recebeu 5 milhões de reais para promover cursos de treinamento profissional. Parte do dinheiro, já se sabe, foi parar na campanha política de um deputado do PT. Para justificarem os gastos, os dirigentes da federação falsificaram planilhas e criaram alunos-fantasma. O que mais chama atenção no caso, porém, é o eixo entre os principais envolvidos na fraude. Todos são correligionários, amigos ou assessores da senadora catarinense Ideli Salvatti, líder do PT no Senado.A investigação da polícia se concentra em dezoito convênios firmados entre a Fetraf e os ministérios do Desenvolvimento Agrário, do Trabalho, da Agricultura e da Pesca – que lhe destinaram 5,2 milhões de reais entre maio de 2003 e março de 2007. O inquérito, que já tem mais de 300 páginas, recolheu provas que permitem concluir que a federação usou uma tecnologia de fraude muito conhecida desde os tempos em que o ex-tesoureiro do PT Delúbio Soares era um simplório conselheiro do Fundo de Amparo ao Trabalhador. Usando a influência política, os dirigentes conseguem prioridade em assinatura de convênios com órgãos públicos. Há no esquema sempre um parlamentar amigo que, por meio de emendas, assegura recursos no Orçamento para os tais programas sociais. Nos ministérios, correligionários em postos-chave são os responsáveis pela seleção das parcerias. Depois, cabe às entidades escolhidas superfaturar contratos, inventar serviços e embolsar o dinheiro, às vezes tudo, às vezes apenas uma parte para simular que alguma coisa foi feita. A Fetraf, segundo a polícia, seguiu à risca essa cartilha.
A sede da Fetraf, em Chapecó: dinheiro só após a chegada do PT ao governo
A Fetraf foi criada em 2001 por petistas ligados à senadora Ideli Salvatti, mas sua importância social só começou a ser reconhecida depois do governo Lula. Um dos convênios já esmiuçados pela polícia foi assinado em 2003 com o Ministério do Desenvolvimento Agrário, que liberou 1 milhão de reais para a entidade promover o treinamento de trabalhadores rurais em Chapecó, interior de Santa Catarina. Na época, o coordenador da entidade chamava-se Dirceu Dresch, um petista do grupo político de Ideli Salvatti. Dois mil trabalhadores rurais participaram do curso. A maioria, descobriu-se agora, era fantasma. Para fazer de conta que o curso existiu, a Fetraf apresentou uma lista de estudantes, com nome, CPF e endereço dos alunos. A polícia foi checar e descobriu que muitos não existiam, outros nunca ouviram falar do curso, alguns nem sequer moravam na região e os poucos que disseram ter freqüentado aulas – pessoas ligadas à federação, é claro – assinavam a mesma lista de presença várias vezes. Nos outros dezessete convênios assinados com a instituição, a história se repetiu. VEJA localizou no interior de Santa Catarina o agricultor Jackson Luiz Oldra. Segundo a polícia, ele foi usado pela federação para "captar" alunos para o curso de técnicas de plantio e colheita para jovens. Sua tarefa para conseguir o diploma de jovem agricultor era pegar as listas em branco na sede da federação, em Chapecó, e devolvê-las completamente preenchidas. "Peguei assinatura até com meu avô e minha avó", conta o rapaz, que já foi intimado a depor na PF. "A gente faz as coisas para ajudar e acaba se metendo em rolo", reclama. Para o Ministério do Trabalho, Ernesto, de 67 anos, e Ana, de 63, constam das estatísticas como "jovens" agricultores. A federação embolsou o dinheiro.
Os convênios exibem outras fraudes grotescas. Para dar aulas a alunos-fantasma, nada mais natural que se chame um professor com conhecimentos especiais. Um dos convocados para a missão exibe um currículo surpreendente. Marcelino Pedrinho Pies foi contratado em abril do ano passado para coordenar um curso destinado a pequenos agricultores, recebendo 4.000 reais por mês. O professor Marcelino tem um salário maior que o de muito doutor de universidade, mas seu currículo também é ímpar. Na mesma época da contratação, ele fez um acordo com a Justiça para doar cestas básicas a uma instituição de caridade. Voluntário? Não. Marcelino, ex-tesoureiro do PT do Rio Grande do Sul, confessou que usou dinheiro do valerioduto para pagar dívidas eleitorais do partido em 2002 quando o candidato ao governo era Tarso Genro, hoje ministro da Justiça. O dinheiro da Fetraf, que deveria estar formando trabalhadores, vem sendo usado para subsidiar também a pena de criminosos. A Polícia Federal estima que, no mínimo, 60% dos recursos destinados a treinar os trabalhadores acabaram nos bolsos ou nas campanhas políticas dos marcelinos da federação. Há evidências que sugerem isso – e muito mais.Jackson, escalado para fraudar as listas: assinatura dos avós em curso para jovensDirceu Dresch, ex-líder da Fetraf no período em que foi assinada a maioria dos convênios, conseguiu se eleger deputado estadual pelo PT no ano passado. Antes disso, ele foi coordenador das campanhas de Ideli Salvatti. Eles pertencem à mesma corrente política do partido. Em 2002, Ideli candidatou-se ao Senado e Dresch a deputado estadual. Fizeram campanha juntos. Ela venceu a disputa e ele não se elegeu. No ano passado, Ideli, que desistiu de se candidatar ao governo em favor do então ministro da Pesca, José Fritsch (com quem a Fetraf assinou um convênio), deu uma mãozinha a Dresch, inclusive destacando Lizeu Mazzioni, um de seus assessores em Brasília, para coordenar a campanha. Ideli e Dresch são sócios na indicação do delegado do Ministério do Desenvolvimento Agrário Jurandi Teodoro Gugel, que assinou doze convênios com a Fetraf e ocupou o cargo até julho passado. Antes do ministério, Gugel era assessor lotado no gabinete de Ideli. Em novembro de 2004, Dirceu, Jurandi e Lizeu estiveram juntos em uma reunião na antiga sede da Fetraf, onde discutiram o apoio político da federação e seus filiados a uma eventual campanha de Ideli ao governo. Em troca, a senadora apresentaria emendas para sindicatos e prefeituras amigas da federação.A campanha de Ideli ao governo não prosperou, mas as tratativas sobre as emendas continuaram. Documentos em poder da polícia revelam que, em 12 de setembro de 2005, o então coordenador de política sindical da Fetraf, Daniel Kothe, e o chefe-de-gabinete de Ideli em Brasília, Paulo Argenta, discutiram as formas de viabilizar os recursos para a federação. Em uma mensagem eletrônica trocada entre os dois gabinetes, chegaram a combinar até o destino das emendas. "Ficamos no aguardo dos encaminhamentos necessários para efetivarmos a aplicação desses recursos na base", escreveu Daniel Kothe, que substituiu Dirceu Dresch como líder da Fetraf-Sul. A mensagem deixa claro que as estratégias de ação da entidade e os projetos financeiros passaram pelo gabinete de Ideli. Os fatos mostram que a relação entre a senadora e o grupo que controla a federação é muito estreita. Além de Jurandi e Lizeu, já houve mais gente do gabinete ligada à Fetraf. Cleci Dresch, mulher do deputado Dresch, foi funcionária do gabinete da senadora até março deste ano. O que ela fazia? "Nunca fui a Brasília. Eu quero que você converse com o meu marido", limitou-se a dizer. O deputado Dresch não quis conversar. Um ex-auxiliar dele confirmou à polícia que parte do dinheiro desviado da federação foi usada em sua campanha política. "Os indícios de fraude e desvio de dinheiro são muito fortes", confirma o delegado Misael Mazzetti, da Polícia Federal.O deputado Dresch, beneficiário do caixa dois da Fetraf, e sua mulher, Cleci, funcionária-fantasma do gabinete de Ideli
A proximidade entre a senadora Ideli Salvatti e representantes de ONGs suspeitas não é novidade. Há outro alvo da CPI que também fica em Santa Catarina, também é comandado por gente ligada a Ideli e também tem uma carteira de milhões de reais em convênios com o governo. Assim como a Fetraf, a Unitrabalho recebeu 18 milhões de reais entre 2003 e 2006 para qualificar trabalhadores. A ONG chamou atenção no ano passado, quando o seu dirigente maior, Jorge Lorenzetti, ex-churrasqueiro do presidente Lula, amigo da senadora e funcionário do comitê de reeleição, foi flagrado em uma operação para comprar um dossiê contra adversários. Nunca se descobriu a origem do dinheiro apreendido com o grupo. A senadora Ideli emprega em seu gabinete Natália Lorenzetti, filha do ex-churrasqueiro petista. Procurada, a senadora não quis se pronunciar. Por intermédio de sua assessoria, mandou dizer que não tem nenhuma relação formal nem com a Fetraf nem com Dresch, e que as emendas que apresentou visaram apenas a beneficiar a agricultura familiar. Mandou dizer ainda que nunca foi citada pela Justiça ou pelo Ministério Público em irregularidade alguma envolvendo a Fetraf ou qualquer outra entidade. É verdade. Ainda não foi.
Assinar:
Postagens (Atom)